Denúncias contra o médium João Teixeira de Faria, de 76 anos, o João de Deus, não são novidades no Fórum de Abadiânia. A reportagem teve acesso a dois processos arquivados no órgão, uma ação por ato libidinoso contra uma estudante de 16 anos, de 2008, e outra por tortura contra um suspeito de furto em 1996. Em ambos os casos ele foi inocentado.

No primeiro caso o Judiciário chegou a reconhecer que João foi imoral, mas considerou que o caso não se configurava como violação sexual mediante fraude. Segundo relatos, a adolescente foi apalpada durante uma sessão religiosa na Casa de Dom Inácio de Loyola e obrigada a pegar no pênis do médium. Enquanto isso, o pai da vítima estava do seu lado de olhos fechados.

Na decisão da juíza Rosângela Rodrigues Santos, ela diz ser certo que João de Deus praticou atos libidinosos contra a vítima. No entanto, apesar de pontuar que a vítima não estava confortável com a situação, a juíza entendeu que a vítima poderia ter exprimido sua vontade, “mesmo porque seu genitor ali esteve durante todo o tempo para ampará-la.”

“Embora se reconheça a fragilidade da vítima que, na ocasião, estava acometida pela Síndrome do Pânico, este fato, por si só, não a impedia de manifestar seu inconformismo com a atitude nefasta do acusado, porque não estava a sós com ele”, afirmou a juíza na decisão.

15 anos para investigar

Já em abril de 1996, segundo processo arquivado, João foi acusado de ter interrogado, torturado psicologicamente e fisicamente dois suspeitos de ter furtado a Casa de Dom Inácio de Loyola. O episódio de violência teria acontecido dentro da Delegacia de Polícia Civil de Abadiânia com a presença de policiais.

Apesar da acusação grave, o inquérito só foi concluído em janeiro de 2011. Em seu parecer, a promotora Cristiane Marques de Souza considerou que a investigação não foi eficiente. “Embora contem os autos com mais de 242 páginas, poucas diligências foram realizadas com o fato de apurar, de forma efetiva e escorreita, os crimes narrados. As próprias vítimas sequer chegaram a ser ouvidas”, aponta.

Em julho o caso foi arquivado, também pela juíza Rosângela Rodrigues, por ter prescrevido. Ela considerou que não houve crime de tortura, já que essa tipificação penal só surgiu em 1997. “O indiciado poderia responder, no máximo, por lesão corporal que, mesmo na modalidade grave, já teria sido alcançada pela prescrição que, neste caso, é de 12 anos”, diz na sentença.

Atual vereador de Abadiânia, Éder Martins (PTB), era escrivão da delegacia na época em que a tortura foi denunciada e chegou a ser ouvido no processo. Procurado pela reportagem, ele afirmou que não se lembrava do fato.

A reportagem entrou em contato com o TJ-GO, que disse que juízes se manifestam apenas nos processos. A reportagem também ligou para o escritório do advogado Alberto Zacharias Toron, que faz a defesa de João de Deus, mas ele não se encontrava no local. O escritório informou que entraria em contato com o advogado e que ele retornaria a ligação assim que possível.

Calmaria, tensão e mais denúncias

O telefone da promotoria de Justiça do Fórum de Abadiânia não parou de tocar durante todo o dia desta segunda-feira (10). Mulheres que diziam ter sido vítimas do médium João de Deus ligavam de toda parte do país. “Algumas ligam para pedir informação, outras desabafam e até choram”, conta uma servidora. Houve ligações de Cachoeirinha (RS), Várzea Grande (MT), além de Brasília, Goiânia e Sanclerlândia (GO).

Do outro lado da cidade, na Casa de Dom Inácio de Loyola, o clima era de calmaria entre os turistas, vestidos de branco, na maior parte estrangeiros, meditando no mirante, na sala das correntes e comprando itens religiosos. Já os coordenadores da Casa, Chico Lobo e Hamilton Pereira, pareciam apreensivos e destoavam do restante do ambiente. Andando apressados de um lado para o outro e sempre conversando.

“Vai ficar aquele tanto de jornalista, ele não vai conseguir atender o povo”, comentou uma pessoa da coordenação sobre os atendimentos presenciais de João, que começam quarta. Oficialmente, eles afirmam que não há temor. “Já estamos acostumados, quando a Oprah Winfrey veio teve jornalista até em cima do teto”, diz Lobo.

Vítima tinha síndrome de pânico

A adolescente de 16 anos que disse ter sido abusada sexualmente pelo médium João de Deus em 2008 procurava ajuda para se curar de uma Síndrome de Pânico. O Judiciário chegou a reconhecer que houve a prática de ato libidinoso, mas entendeu que a vítima deveria ter “manifestado seu inconformismo”.

Conforme relatos, durante uma sessão com a adolescente juntamente com seu pai, o médium determinou que ambos fechassem os olhos e ordenou que o pai ficasse de costas, virado para a parede. Neste momento, ele ficou de frente para a adolescente, disse para ela pedir a Deus para ele ajudá-la a ser curada, e nesse momento passou as mãos nos seios, barriga, nádegas e virilha da jovem.

Conforme relatos, ele segurou, por cima da roupa, a mão da vítima, movimentando-a para cima e para baixo sobre o seu pênis, afirmando que através daquele tratamento seria curada. A jovem conta que tentou puxar a mão, mas ele segurou e continuou os movimentos. Nos relatos, a adolescente afirmou que, acuada e assustada, não conseguiu pedir ajuda e limitou-se a chorar. Ainda conforme a vítima, João sentou em uma cadeira, mandou a jovem se ajoelhar na sua frente e continuou a segurar a mão dela, obrigando-a a segurar o órgão genital do homem. A jovem disse que no momento não falou com seu pai porque entrou em pânico e teve nojo da sua mão.

Apesar do pedido de condenação do Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) na época, em 2013, a juíza Rosângela Rodrigues Santos entendeu que João de Deus foi imoral, mas que não houve o crime de violação sexual mediante fraude. Ela entendeu que “a vontade da vítima não se encontrava viciada no momento do fato, ainda que o acusado estivesse prometendo falsamente ou artificiosamente uma cura”.

O MP-GO recorreu da decisão da juíza, que foi julgada procedente pela 2ª Câmara Criminal ainda em 2013. Em voto, o juiz relator Fábio Cristóvão de Campos Faria pontuou que mesmo não sendo crível que a vítima fosse em juízo relatar o fato apenas para prejudicar o réu, é preciso se atentar que ela na época era portadora de Síndrome do Pânico. O juiz cita a literatura médica, dizendo que os ataques deixam a pessoa incapacitada, levando-a a temer situações em que não há perigo concreto.

“Os sintomas sugerem, assim, que a pessoa está sob ameaça de algo terrível, do qual precisa fugir, gerando uma condição mental em que não é possível distinguir a fantasia e a realidade”, consta em voto.
O juiz pontuou ainda que, embora os depoimentos da jovem tenham se mantido uniformes ao longo do processo, não havia testemunha presencial, uma vez que o pai estava de costas e de olhos fechados. O voto diz ainda que a comprovação da autoria necessitaria de um exame de corpo de delito, mas ato libidinoso em que não há junção carnal não deixa sequelas físicas, não sendo passível de constatação por laudo pericial. “A condenação reclama certeza fundada e, na dúvida, prevalece o estado de inocência”, escreveu o magistrado. (S.T.)

MP-GO e Polícia Civil fazem forças-tarefas 

Duas forças-tarefas foram montadas, nesta segunda-feira (10), para apurar as denúncias de possíveis vítimas de violência sexual do médium João Teixeira de Faria, de 76 anos, conhecido como João de Deus. Em menos de 8 horas, o Ministério Público de Goiás (MP-GO) recebeu mais de 40 denúncias de mulheres que se apresentaram como vítimas. A Polícia Civil, por sua vez, que já possuía três inquéritos instaurados recebeu sete novas denúncias e agendou, para esta semana, quatro depoimentos.

Das 40 denúncias, 35 foram enviadas pelo e-mail criado exclusivamente para essa finalidade: denuncias@mpgo.mp.br. De acordo com assessoria de imprensa do MP, a maioria das vítimas que se apresentaram até esta segunda-feira é de fora de Goiás.

Quem desejar denunciar formalmente o médium não precisa se deslocar até o Estado. Pode procurar os MPs de qualquer localidade ou enviar um e-mail com nome completo e contato. O promotores garantem que o sigilo será mentido.

Os integrantes da força-tarefa destacam que a formalização da denúncia é de extrema importância. “Muitas vítimas demoram um tempo para entender o que aconteceu. Não conseguem processar o fato, se sentem culpadas. Precisamos que vocês estejam encorajadas para denunciar e se sintam seguras. Testemunhas também podem procurar o MP. Não tenham medo”, afirmou a promotora Patrícia Otoni, coordenadora do CAO de Direitos Humanos do MP-GO.

O Ministério Público irá abrir um Procedimento de Investigação Criminal (PIC) e o procurador-geral de Justiça de Goiás, Benedito Torres Neto, assinou portaria designando cinco promotores e duas psicólogas para integrarem a força-tarefa. O grupo é formado pelos promotores Luciano Miranda Meireles (coordenador do CAO Criminal), Patrícia Otoni (coordenadora do CAO de Direitos Humanos), Gabriela de Queiroz (do Gaeco), Stive Gonçalves Vasconcelos, promotor de Alexânia e que está respondendo por Abadiânia devido às férias da promotora do município e Cristiane Marques, que também irá integrar o grupo ao retornar, em janeiro.

Reabertos
De acordo com o MP, os casos arquivados por falta de provas podem ser reabertos. Nesta semana, já existe agendamento de depoimentos nas sedes do Ministério Público de Minas Gerais e São Paulo. “Pelo que analisamos até agora, nas denúncias veiculadas na imprensa temos três tipos de crimes: estupro (até 10 anos de prisão); estupro de vulnerável (até 15 anos de pena) e violação sexual mediante fraude (até 6 anos). Os dois primeiros são considerados hediondos”, explica o promotor Luciano Miranda.

Outra força-tarefa foi aberta pela Polícia Civil que já possui três inquéritos instaurados, em fase de investigação. No total, seis delegados e duas psicólogas integram a equipe e os casos registrados em todo o Estado serão reencaminhados à Delegacia Estadual de Investigações Criminais (Deic). Dos sete novos casos registrados desde o último sábado (8), quatro depoimentos já foram agendados para esta semana. A assessoria da Polícia Civil explica que a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) não estará à frente da investigação porque é municipal. Apesar disso, a equipe conta com Karla Fernandes Guimarães, que hoje está na equipe da Deic, mas atuou por 10 anos na Delegacia da Mulher.

24 horas
Para receber as denúncias, a Polícia Civil disponibilizou, além do 197, o telefone (62) 3201 1140 que terá policiais disponíveis 24 horas para orientar possíveis vítimas. “Todas as pessoas que foram vítimas precisam procurar a Polícia Civil porque temos uma técnica própria de atendimento dessa natureza. Vamos concentrar a investigação na Deic, mas vítimas podem procurar delegacias locais e suas denúncias serão encaminhadas”, afirmou o delegado-geral da Polícia Civil, André Fernandes.

O grupo da Polícia Civil é formado pelos delegados da Deic: Valdemir Pereira, Karla Fernandes, Ivaldo Gomes e Vladimir Freire além da titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), Paula Meotti e o delegado de Abadiânia, Rodrigo Jaime. Duas psicólogas também integram a equipe: Aliciana Oliveira de Freitas e Viviane Teles. (Catherine Moraes)

Médium é aguardado para ser ouvido 

O médium João de Deus ainda não falou com a imprensa após as denúncias sobre abusos sexuais virem à tona, mas o delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, André Fernandes, afirmou que esta segunda-feira o advogado dele, Alberto Toron, entrou em contato espontaneamente e informou que seu cliente deve se apresentar nos próximos dias para ser ouvido. A data, no entanto, não foi confirmada.

Questionado sobre a possibilidade de prisão do líder espiritual, o delegado destacou que a medida só deve ocorrer caso haja provas. “A Polícia Civil trabalha com provas. É necessário que tenhamos provas para solicitar prisões. É preciso seriedade, investigação concreta para que as decisões tomadas aqui não sejam desfeitas pelo Poder Judiciário. A Polícia Civil não está negociando”, afirmou.

O secretário de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO), Irapuan Costa Júnior, disse nesta segunda-feira ao POPULAR que a condução das investigações das denúncias contra o médium “é determinação lava jato”. “Poderoso ou humilde, todo mundo tem que responder perante a lei”.

Irapuan afirmou que a Polícia Civil não faz pré-julgamento, mas também não trata poderoso de forma diferente. “Nós temos tido um cuidado muito grande com os crimes contra a mulher. E dentro desse cuidado é que será levado esse inquérito”, afirmou.

Defesa nega

Após as primeiras denúncias em programas da Rede Globo, no fim de semana, o advogado Alberto Toron, afirmou que João de Deus “nega” e “recebe com indignação essas declarações”. Toron destacou que os atendimentos do médium na Casa Dom Inácio Loyola, em Abadiânia, acontecem desde 1976. “Me parece importante que se esclareça ao grande público que ele (João de Deus) tem um trabalho de mais de 40 anos naquela comunidade, atendendo a todos os brasileiros, atendendo a gente de fora do País, sem nunca receber esse tipo de acusação”. Nesta segunda-feira, o defensor não atendeu e nem retornou às ligações do POPULAR.

Fonte: O Popular