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Milhões somem em ONG - 19/02/2008

A realidade revela falta de controle e de fiscalização na gestão do dinheiro público em várias esferas do poder. Um caso exemplar de desvio acaba de aparecer em Goiás. Envolve o Instituto Nacional de Formação e Assessoria Sindical (Ifas-foto), uma organização não-governamental ligada ao movimento sindical, à questão agrária e ao PT.

Entre os fundadores da ONG está Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT e um dos cabeças do esquema do mensalão (suposta compra de votos no Congresso). O Ifas, cujo endereço é uma casa modesta no centro de Goiânia, assinou um convênio de R$ 7 milhões com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Já recebeu mais de dois terços dos recursos (R$ 4,6 milhões), mas até agora não conseguiu provar como gastou esse dinheiro.

A transação virou caso de polícia. No penúltimo dia de janeiro, agentes da Polícia Federal entraram na sede do instituto e levaram um amontoado de documentos relacionados ao convênio. Muitos dos papéis apreendidos pela PF reforçam a suspeita de desvio de uma parte significativa do dinheiro. A ordem de busca e apreensão foi da Justiça Federal, que também bloqueou as contas da entidade e suspendeu os repasses. A Justiça atendia assim ao pedido da Procuradoria da República em Goiás. Até ali, parecia ser apenas mais um contrato obscuro na distribuição de dinheiro público para ONGs no Brasil. ÉPOCA apurou que a história vai além. É uma ação entre amigos do PT para abastecer – com dinheiro público – entidades amigas do governo que ajudaram, nos últimos anos, a diminuir a estridência dos movimentos sociais contra o governo. Antes do governo Lula, esses movimentos, como o dos trabalhadores rurais sem terra, reclamavam do desprezo de Brasília. Com o PT no poder, passaram a ter cargos na máquina federal e a receber dinheiro público. Em algumas situações, da maneira menos ortodoxa possível.

Foi o que aconteceu no convênio entre o Ifas e o Incra. O contrato foi assinado em 26 de dezembro de 2006 pelo presidente do Incra, Rolf Hackbart. Em sua primeira versão, totalizava R$ 6,3 milhões. Em outubro de 2007, foi reajustado para R$ 7,1 milhões. Pelo convênio, o Ifas teria de treinar 9.375 trabalhadores rurais. A finalidade da ONG seria organizar cursos técnicos e formar lideranças em assentamentos rurais em 12 Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O acerto com o Incra previa que, já em fevereiro de 2007, o Ifas teria de apresentar sua primeira prestação de contas. E, depois, a cada três meses deveria enviar um relatório sobre os cursos. Nada disso aconteceu. Mesmo assim, Hackbart continuou a repassar o dinheiro para o Ifas – os R$ 4,6 milhões – até a intervenção da Justiça. “Não há nada de irregular nisso”, diz Hackbart, que, antes de virar presidente do Incra, já era um petista com fortes ligações com movimentos de sem-terra. “Nós precisamos desses convênios para nossos projetos.”

O presidente do Incra diz que o Ifas não foi escolhido por sua ligação com o PT, mas por indicação da Fetraf-Brasil, uma federação que congrega mil sindicatos com 750 mil famílias de trabalhadores na agricultura familiar. Hackbart não admite, mas na prática é a mesma coisa. Criada em 2005, com direito à presença de Lula na cerimônia de lançamento da entidade, a Fetraf-Brasil é dominada por petistas. Para o governo, é uma aliança interessante. A Fetraf tem forte influência no interior do país. O problema é que o dinheiro para bancar a estrutura da entidade está saindo do bolso do contribuinte.

ÉPOCA obteve cópia da ata da última assembléia do Ifas, realizada em dezembro de 2007. O documento é esclarecedor. Nele, os próprios dirigentes da ONG dizem que o dinheiro repassado ao Ifas também paga as contas da Fetraf-Brasil. Na ata, os dirigentes das duas entidades admitem o descontrole sobre a verba e reconhecem que não estão cumprindo os convênios. “Se o Ifas e a Fetraf-Brasil continuar (sic) gerenciando os convênios como está, teremos vida muito curta”, diz um dos dirigentes da ONG, Francisco Lucena. A mesma ata registra declaração de um dirigente da Fetraf no Pará, Francisco Ferreira. “O Ifas passou a pagar dívidas da Fetraf-Brasil, misturando as gestões”, diz ele. Ao longo de toda a assembléia, ninguém se entende sobre as prestações de contas dos milhões repassados pelo governo. Ao final dela, a coordenação do Ifas foi substituída. “Não posso garantir que não houve desvio de dinheiro antes da minha chegada”, disse o atual coordenador do Ifas, Antônio Pereira das Chagas.

Os indícios da desordem na ONG petista já apareciam antes mesmo da divulgação das atas. Na ação que impetrou na Justiça para barrar os repasses do Incra à entidade, o procurador da República em Goiânia, Raphael Perissé, relata ter ido até o endereço declarado pelo instituto. Encontrou a casa fechada. Pela aparência, nada funcionava ali. “De vestígios de existência e atuação do Ifas, somente o resto de um cartaz rasgado ainda pendente no muro”, escreveu na ação. “Depois que saiu a decisão judicial, eles voltaram a freqüentar o local”, disse o procurador a ÉPOCA. Perissé aponta outro indício de fraude: embora o convênio tenha sido firmado em dezembro de 2006, o plano de trabalho só foi apresentado pelo Ifas em 29 de outubro de 2007. Ou seja: o Incra assinou o contrato dez meses antes de receber o projeto.

O Ifas, que agora aparece como financiador de um dos sustentáculos sociais do governo à custa de dinheiro público, foi fundado em 1985 por um grupo de 12 petistas. Um deles é Delúbio Soares. Outro é Hamilton Pereira da Silva, também conhecido pelo pseudônimo Pedro Tierra, um poeta que se gaba de ser amigo do presidente Lula, foi um dos fundadores do PT e até maio passado ocupava a presidência da Fundação Perseu Abramo, o núcleo pensante do partido. Hamilton Pereira foi o primeiro presidente do Ifas. Hoje, é secretário de Articulação Institucional do Ministério do Meio Ambiente. Em maio de 2007, a ONG ganhou outro contrato da estatal Petrobras. São R$ 4 milhões para ensinar trabalhadores rurais de Minas Gerais, Ceará e Bahia a plantar mamona para a produção de biodiesel.

O caso da ONG de Goiás é mais um exemplo do descontrole admitido na semana passada até pelo presidente Lula e por representantes do governo. “Nós precisamos, a partir das deficiências, fazer as correções necessárias e continuar colocando na internet as informações. Todo mundo tem de mostrar concretamente o que é gasto todo santo dia”. Para Lula, “só tem um gasto que não deve ser explicitado e detalhado, o gasto com segurança. Isso é uma coisa muito delicada”. Enquanto o governo se envolve em discussões semânticas sobre a definição de “gastos com segurança” e as fronteiras do sigilo, o ministro da Coordenação Política, José Múcio, engrossa o cordão dos que reconhecem que o governo falhou. “Podería­mos ter usado melhor a Transparência e corrigido a tempo”, disse Múcio.

Os abusos dos cartões do governo e as mordomias pagas com verbas secretas são apenas parte de um problema muito maior, não detectado pelo Portal da Transparência. Nos últimos oito anos, R$ 17,8 bilhões saíram dos cofres federais rumo a contas bancárias de todo tipo de ONG, de associações especializadas em saúde indígena até grupos folclóricos desconhecidos. Sabe-se que uma parcela considerável desse dinheiro nem sempre chega ao destino. Desde outubro, uma comissão parlamentar de inquérito instalada no Senado tenta esquadrinhar as denúncias de desvio. “Fiscalizar os contratos das ONGs com o governo é uma necessidade mais urgente que a questão dos cartões, porque eles envolvem uma grande soma de dinheiro”, diz Alketa Peci, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro.

Há certos abusos com o dinheiro público que poderiam ser evitados por um simples exame de consciência. O reitor da UnB, Timothy Mulholland, gastou R$ 389 mil de dinheiro público em móveis e utensílios (leia na pág. 38). O secretário especial dos Portos, Pedro Brito, e o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Machado, depois que trocaram de cargos no governo federal, receberam respectivamente R$ 8.300 e R$ 18 mil em “auxílio de mudança”, mesmo permanecendo em Brasília.“Não penso em devolver o dinheiro. Cumpri aquilo que considero ser o meu direito”, disse Machado. Em casos assim, falta no mínimo discernimento a essas autoridades. Ou vergonha mesmo.

Para além do comportamento das autoridades, há avanços institucionais a serem feitos pelo Brasil, a exemplo de países mais avançados (leia o quadro na pág. 38).“Não adianta expor se não houver investigação e ninguém for punido por seus erros”, diz o administrador público Caio Marini, professor da Fundação Dom Cabral (leia a entrevista na pág. 42). “No Brasil temos muitas instâncias de fiscalização e pouco diálogo entre elas”, diz o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Ubiratan Aguiar. Há também incúria. Todas as contas do Executivo, secretas ou não, são examinadas anualmente pelo TCU e enviadas ao Congresso. A última prestação de contas do governo que o Congresso examinou foi a de 2001, ainda no governo FHC.

O Brasil ainda mantém parte das despesas oficiais fora do alcance do público. Aqui são considerados secretos os gastos que envolvem a “segurança do Estado e da sociedade”. O filósofo Roberto Romano discorda desse conceito. “O sigilo das contas é ético na visão absolutista, do Estado não-democrático”, afirma. “Na Inglaterra, na França e nos EUA, o operador governamental tem de prestar contas ao contribuinte. Não pode alegar segredo.”

No Brasil, caberia ao Congresso fiscalizar as despesas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). O orçamento da Abin neste ano é de R$ 33 milhões. Mas só depois de saber, pelo Portal da Transparência, que os agentes da Abin sacaram R$ 11,5 milhões do cartão corporativo em 2007 é que o Congresso anunciou a intenção de averiguar o uso das verbas da agência.

Esse mesmo Congresso se enrolou nas duas últimas semanas com a criação de uma CPI para investigar abusos com cartões, tanto no governo Lula quanto no governo de Fernando Henrique Cardoso. A troca de acusações leva a crer que essa CPI não dará em nada. O cientista político Fernando Abrucio acredita que o Congresso chegou a um nível complicado de esgotamento, diante de tantas investigações e acusações. Ele espera que o país pare um pouco para fazer o dever de casa: aprimorar a legislação e as políticas públicas. “Tomara que governo e oposição percebam isso logo”, diz Abrucio. Só assim haveria serenidade para passar a “nossos filhos e netos” o legado de um país que honra a transparência de valores.

O sultão da universidade

O reitor da Universidade de Brasília (UnB), Timothy Mulholland, é homem de hábitos finos. Gosta de fumar charutos importados e colecionar carros antigos, entre eles um Porsche. Para combinar com sua sofisticação, recebeu no apartamento onde morava, até a semana passada, um pacote invejável de utensílios de primeira linha. Um home theater de R$ 36 mil, toldos de R$ 10 mil, fogão de R$ 7.100, lixeira de R$ 1.000, saca-rolhas de R$ 859, liquidificador de R$ 499 e abridor de latas de R$ 199. Ao todo foram R$ 389 mil em mercadorias destinadas ao regalo do reitor e da família. Sabe quem bancou essa festança? Nós, contribuintes.

O dinheiro para tudo isso saiu da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), instituição criada pela UnB para realizar pesquisas de ponta. Desde 2002, a Finatec recebeu R$ 75 milhões do governo federal. Desse valor, R$ 23 milhões da UnB. “A fundação tem de empregar o dinheiro público em projetos científicos. Essa história de comprar eletrodomésticos e móveis é piada de mau gosto”, afirma o procurador Ricardo Souza, que denunciou os gastos.

Depois da denúncia, Mulholland deixou o apartamento na calada da noite, na tentativa de fugir dos flashes. Mas não parece ter se constrangido com os presentes. “Havia uma linha estética. Não se mobilia uma casa de qualquer maneira. Tem linhas de estética para poder ter um conjunto harmonioso. Não há nenhum problema. Nem legal, nem ético”, diz Mulholland. De acordo com a UnB, a compra de todos os itens é regular porque nem todo dinheiro da Finatec deve ser revertido em pesquisas, os bens são propriedade da UnB e o apartamento apenas servia como local para a representação institucional.

O reitor realizava jantares no imóvel, localizado no 6o andar de um luxuoso prédio de Brasília. Segundo servidores da UnB que visitaram o local e pediram para não ser identificados, o reitor fazia questão de exibir o local aos convidados. “Chamam a atenção as portas grandes de madeira, a churrasqueira, a sauna e uma banheira de ofurô”, afirma um funcionário. O luxo do apartamento contrasta com alojamentos de estudantes no campus da UnB, com vazamentos e falta de iluminação.

Mulholland nasceu nos Estados Unidos, no Estado da Califórnia. Chegou com 2 anos ao Brasil e cresceu em Floriano, no interior do Piauí. Está na UnB desde a metade dos anos 70. É considerado um ás da psicologia cognitiva, ramo da ciência que tenta descobrir as razões por trás do comportamento humano. Apesar da coleção de carros, no dia-a-dia anda em um Honda Civic, comprado em 2006 por R$ 72 mil, também pela Finatec, com motorista. “Ele queria um carro automático. Fez cara feia quando soube que chegou um de câmbio manual”, diz um servidor.

O Ministério Público Federal quer que a Finatec devolva R$ 24 milhões aos cofres da União. “Esse caso (do reitor) é apenas a ponta de um imenso iceberg”, afirma o procurador Ricardo Souza. De acordo com as investigações, um diretor gastou mais de 300 euros em um free shop na Holanda. Segundo a assessoria da Finatec, ele comprou uma câmera fotográfica para ser usada em um projeto da entidade. Outro diretor contratou a própria construtora para erguer a sede da fundação. Fonte: Época Online