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Sistema prisional - 19/06/2008

Maria Cláudia Cabral*

“[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento” (Foucault, 1975).


De 1757 para cá muita coisa mudou, quase nada mudou no que se refere ao tema carcerário. Muitas são as teorias que tratam do assunto, assim como muitas são as contradições. Exemplo disso é a Constituição de 1988, que, por um lado, amplia o rol de direitos individuais, positiva princípios como o da dignidade da pessoa – em diálogo coerente com o Estado Democrático de Direito – e, por outro, cria figuras tautológicas como a do crime hediondo.

O atendimento pelo Legislativo ao clamor sôfrego da sociedade por vingança social, acirrado e estimulado, muitas vezes pela mídia, faz de nossos dias, mais próximos da sentença de Damien do que podemos supor. Aqueles que já visitaram estabelecimentos carcerários, estou certa, sabem do que estou falando. Pelo menos 30 pessoas numa cela apertada, umas dormindo de pé ou revezando espaço para dormir, verdadeiramente armazenadas, isso é ou não tão cruel quanto as cenas descritas no texto de Foucault? A grande diferença dos dias atuais é que a sociedade quer justiça e confunde justiça com vingança. Mais penas, punições mais severas, eis o clamor.

Segundo dados do Ministério da Justiça, a população carcerária é de cerca de 422 mil pessoas, com uma projeção de que até o final do ano chegue a 450 mil pessoas. Essa população só cresce. E por quê? Vimos criminalizando mais condutas, endurecendo penas. Vimos investindo bastante em capacitação policial, em equipamentos, ampliação dos quadros de segurança pública – o que é ótimo – e nada ou muito pouco no sistema prisional. Insuficientes investimentos em educação, esporte, cultura e trabalho para a população carcerária, investimento praticamente zero em reinserção social de egressos do cárcere. Há muita desinformação por parte da sociedade em geral e extrema resistência por parte de governos estaduais e municipais.

Por isso, entre outras razões, os presídios são depósitos fétidos – me desculpem a crueza dos termos – de animais imundos (homens e mulheres). Isto é o que o Estado brasileiro entende por justiça? Há possibilidade de reinserção social nesse cenário?

Acredito que não! Acredito mais, que o sistema penal, ao impor uma pena de reclusão, está cerceando a liberdade de ir e vir daquele que desafiou o sistema, realizando uma conduta típica e antijurídica, e está correto. Mas não significa, entretanto, que possa cercear – e cerceia – um conjunto de outras liberdades e direitos – chamados direitos humanos – inclusive e, no nosso entender especialmente, o direito de expressão.

A população carcerária tem cultura própria, tem sistema de regras e normas de conduta próprios – muitas vezes, mais rígidos que aquelas levadas a cabo pelo Estado. Nem nós – a sociedade – nem o Estado conhecemos essa cultura. Que cultura é essa? Que formas de expressão têm os encarcerados e as encarceradas brasileiras? Dar voz a essa população é, talvez, uma das formas de resgatar e devolver a ela os sentidos de humanidade, que vão lhes sendo tomados pela desigualdade, pelo desafeto, pela vida dura das grandes cidades. Sentidos que lhes são arrancados quando são depositados em presídios superlotados. Mas não basta apenas dar voz. Ao tirar a liberdade de ir e vir, é importante manter a liberdade de sonhar. A pessoa que não sonha perde a sensibilidade.

A população carcerária, mesmo sem condições, produz arte. Haja vista a recente exposição feita nos escombros do Carandiru, com portas remanescentes daquela construção. Ali se podiam ver colagens, poemas, textos, expressões de vida e sentimento. Há cerca de três anos o Departamento Penitenciário promoveu uma exposição no Salão Negro do Ministério da Justiça com poemas de mulheres privadas de liberdade. Eram textos emocionantes.

Há várias experiências de arte-cultura, grupos de teatro compostos por pessoas privadas de liberdade. Existem diversas formas de expressar, de falar de dores, de amores, de rancores. Maneiras de expurgar a raiva, muitas vezes sentida diante das profundas desigualdades de nosso país.

Acreditando na capacidade criativa e de expressão da população carcerária, é chegada a hora de analisar a questão sob uma ótica integral e integrada, buscando alternativas para o resgate da auto-estima, da capacidade produtiva e reflexiva, possibilidades para devolver a liberdade de expressão – cerceada pela dura realidade dos presídios brasileiros – e devolver o sentimento de pertencimento à raça humana.

Por outro lado, as ações desenvolvidas pelo Estado com o objetivo de (efetivamente) ressocializar (não gosto deste termo) devem colocar a pessoa apenada no centro da relação, de modo a estimular e valorizar seu protagonismo. O apenado e a apenada não devem ser vistos como beneficiários de políticas, mas partícipes. Participar do processo de escolha, ser parceiro na consecução de um acervo, na decisão de montar ou não um grupo de teatro, de dança, de música ou de que linguagem artística for – ou até de não montar – é fundamental para se ampliarem as chances de êxito da experiência. São eles – os homens e mulheres privados da liberdade – agentes da própria transformação, e é essa força que se deve incorporar às ações.

Ações de leitura são fundamentais, pois livros são portas para o mundo, abertas para o sonho, o lúdico, o imaginário. Livros podem trazer luz à escuridão e à solidão das celas. Num sistema em que boa parte dos ‘clientes’ é analfabeto(a) ou analfabeto(a) funcional, importa agregar a Pontos de Leitura ou bibliotecas ações de alfabetização, dentro da lógica de protagonismo daqueles que melhor conhecem o sistema e suas necessidades – os próprios apenados – por meio da decisão e da escolha de títulos e de linguagens culturais. Com isso, estabelece-se – ou pelo menos se aumentam as chances de estabelecer – a co-responsabilidade pelos materiais usados.

Destaca-se também a importância de que as atividades não sejam obrigatórias. O lúdico e a expressão – seja ela escrita, oral, corporal ou audiovisual – não podem ser impostas. Há que se ter desejo de expressar. É necessário fazer do tempo de reclusão um tempo de reflexão sobre os próprios sentimentos e formas de ver. E transitar no mundo é uma sugestão de humanizar não só a vida nos presídios, mas abrir novas portas, outras possibilidades de vida além dos muros da prisão.

Ações de reciclagem de materiais dialogam não só com a preservação do meio ambiente, da expressão artística, mas também com a possibilidade de empreender a partir da experiência de reciclagem em cooperativas ou mesmo empresas especializadas. Reciclar ensina não só uma forma de ganhar a vida, mas, sobretudo, uma maneira de transformar a própria vida.

O desafio do Estado por meio do sistema carcerário não pode – e não deve – ser operar a vingança social, mascarada de justiça. O desafio consiste em transformar vidas.

Antes, porém, importa transformar aquilo temos chamado sistema de justiça penal. Refletir sobre as contradições postas tanto na Lei Maior, quanto em seus reflexos, muitas vezes traduzido na forma como se operacionaliza a Lei de Execuções Penais. No caso do sistema de justiça penal há que pensar e fazer não pequenos ajustes, remendos, amoldamentos, mas profundas transformações. É hora de refletirmos – governos, Legislativo, Judiciário, Ministério Público e sociedade – o sistema de justiça penal que queremos realmente, porque, como ouvi recentemente na CPI do Sistema Carcerário: “os apenados hoje estão contidos, amanhã poderão estar ‘contigo’” (frase escrita em um presídio do nordeste, segundo o deputado Domingos Dutra, relator da comissão). Fonte: congressoemfoco.ig.com.br

*Advogada, pós-graduada em Direito Público (Cooperação Jurídica Internacional em Matéria Penal), assessora da Secretaria Executiva do Ministério da Cultura, responsável pela articulação e integração do Programa Mais Cultura com o Programa de Segurança Pública com Cidadania/MJ (Pronasci), entre outros. Trabalhou nas secretarias Nacional de Justiça e Executiva do Ministério da Justiça por cinco anos.