Ministério Público teria adquirido sistema de escuta telefônica, o Guardião, instrumento próprio da polícia, para investigar crime organizado no Estado de Goiás
ANDRÉIA BAHIA
A discussão sobre os limites do poder de investigação do Ministério Público, tema de um questionamento que tramita no Supremo Tribunal Federal, divide opiniões. Pela legislação brasileira, a instituição é titular exclusiva da ação penal pública e cabe a ela mover a ação penal, todavia a investigação é de responsabilidade da polícia judiciária. O Ministério Público entende que a polícia tem dificuldade para investigar alguns crimes - os crimes organizados que envolvem a própria polícia ou pessoas ligadas aos governos a quem a polícia está subordinada.
O promotor Fernando Krebs, da promotoria de Defesa do Patrimônio Público, explica que o MP tem a prerrogativa da investigação em inquéritos civil públicos, que investigam crimes ambientais, contra o consumidor, o cidadão e o patrimônio público. Ele observa, no entanto, que cabe exclusivamente ao MP propor as ações penais públicas e de improbidade administrativa. "É de entendimento doutrinário que o titular da ação penal pública pode proceder à investigação." Segundo Fernando Krebs, o MP não tem a intenção de substituir a polícia em seu trabalho de investigação, mas complementar naqueles casos em que a polícia não tem a independência necessária para dar andamento ao inquérito.
Para o promotor, o fato de a Polícia Civil ter investigado, entre os 246 prefeitos goianos, apenas o prefeito de Catalão, Adib Elias (PMDB), que faz oposição ao governo estadual, é um indício de sua falta de independência. "Quer dizer que não há prefeitos dos partidos da base do governo estadual que são corruptos?", questiona. Na opinião de Fernando Krebs, a falta de independência da polícia é uma deficiência institucional da polícia - que não pode favorecer as organizações criminais. O promotor afirma que, nos países desenvolvidos, a investigação criminal é feita sob o comando do MP e que para a instituição investigar crime de corrupção, mau uso do dinheiro público por pessoas que se posicionam no alto da pirâmide social não é necessário alterar a legislação. "O pobre a polícia investiga muito bem, queremos incomodar os não algemáveis."
O promotor Rodney Silva, coordenador do Centro de Apoio ao Combate a Organizações Criminosas, defende que sejam aumentadas as prerrogativas dos delegados para que a polícia tenha independência para fazer investigações, todavia observa que num país onde o Estado desorganizado está sempre um passo atrás do crime organizado, não se deve coibir o poder de investigação das outras instituições que combatem o crime. "Por que não questionam o poder de investigação das CPIs da Câmara e do Senado?" Para o promotor, essa disputa por espaços institucionais que ocorre entre a polícia e o MP é infrutífera e o ideal seria a criação de uma força tarefa com todos os órgãos que combatem o crime onde cada um faria seu papel. "O MP não tem interesse em sobrepor o trabalho da polícia", afirma.
A polícia não pensa assim. Segundo o delegado geral da Polícia Civil de Goiás, Marcos Martins Machado, "o MP vem lutando para tornar a polícia seu órgão auxiliar". Segundo ele, a prerrogativa da investigação criminal é da polícia judiciária e "a não ser que haja uma mudança na legislação, o MP não pode investigar crimes". Segundo o delegado, a Justiça pode invalidar a denúncia oferecida com base em provas produzidas no âmbito do MP. "E as provas produzidas diretamente pelos promotores podem ser contestadas."
Segundo Marcos Martins Machado, o MP sugeriu que a polícia participasse de um grupo de combate ao crime organizado com um delegado e um grupo de policiais civis. "Mas não temos recursos humanos para fazer isso hoje, mas vamos estudar a possibilidade", afirma o delegado. Ele conta que em Goiás, diferentemente de São Paulo onde polícia e MP trabalham em parceria, as duas instituições desenvolvem suas ações individualmente. "O MP move o inquérito depois que a investigação é feita pela polícia."
Nessa discussão há um consenso entre promotores e policiais: "O MP não tem estrutura operacional para substituir a polícia na investigação", admite o promotor Fernando Krebs. Por isso cabe aos promotores complementar o trabalho da polícia. Marcos Martins Machado, da Polícia Civil, observa que "o MP é muito reservado, por isso não se sabe se ele tem estrutura para investigar". Todavia, observa que os promotores não têm formação acadêmica para promover ou presidir investigações criminais. "Na academia, o policial é formado para investigar."
Sistema Guardião — Paralela à discussão do poder investigatório do MP ocorre nesse momento outro debate que também envolve a instituição, a interceptação telefônica. Na CPI dos Grampos, onde os senadores questionam a legitimidade das instituições de interceptar os telefonemas, se discute a fragilidade do sistema, a responsabilidade do Judiciário como poder concedente das autorizações de monitoramento, a escuta telefônica feita por detetives particulares e o papel das operadoras de telefonia nos grampos.
O MP de Goiás não admite nem nega, mas há informações que a instituição adquiriu um software chamado de Sistema Guardião capaz de interceptar conversas telefônicas. O coordenador do Centro de Apoio de Combate a Organizações Criminosas, Rodney Silva, diz que não divulga a estrutura de investigação da instituição para não favorecer os criminosos, que estão sempre passos à frente dos órgãos de repressão. Ele observa que estas discussões sobre grampo telefônico e uso de algemas só vieram à tona nesse momento porque "pessoas de grande calibre" foram atingidas pelas investigações. Para ele, trata-se de retaliação. "Quando a polícia excede com pessoas comuns, a discussão é amenizada." Essa diferença de tratamento torna a polícia seletiva, na opinião do promotor. O promotor observa que a CPI dos Grampos, criada para investigar eventuais excessos da Polícia Federal, inverteu a temática da discussão para o MP. "O MP não comete excessos porque tem como fundamento a garantia dos direitos civis."
Na interpretação do advogado e jurista Ney Moura Teles, a Constituição Federal atribui às polícias a exclusividade da investigação e ao MP a prerrogativa de oferecer a denúncia. "No Brasil, há essa separação: a polícia investiga e o MP acusa." Todavia, observa o advogado, se tem as provas, o MP pode denunciar. Quanto à aquisição do Sistema Guardião, Ney Moura Teles considera um absurdo. "Será que algum juiz vai autorizar o MP a fazer escuta?" Para o advogado, isso seria, além de inconstitucional, "fora de propósito".
O advogado Felicíssimo Sena, ex-presidente da OAB, considera legítimo que os promotores façam investigações civis e também penais, mas ressalta que, para que a prova produzida unilateralmente dentro do âmbito do MP tenha validade, é preciso que seja jurisdicionada, ou seja, repetida em juízo. "O MP é respeitável, mas é parte do processo." Ele observa, no entanto, uma sobreposição no trabalho do MP e da polícia no campo da investigação - "essa reincidência não é explicada" - e afirma que o MP não tem tradição em investigações. Para o advogado, o MP pode usar o Sistema Guardião desde que com autorização judicial. "É preciso que o sigilo telefônico seja quebrado de acordo com critério, caso a caso e com duração específica e que seja usado para fins específicos, sem os vazamentos que têm ocorrido." Para ele, é inaceitável a intercepção telefônica retroativa, o que seria uma confissão de escuta clandestina.
Pedro Sérgio do Santos, advogado e professor de Direito da UCG, afirma que a função constitucional do MP é ser autor da ação penal e para isso é necessário uma prova que sustente a denúncia, seja ela fruto de um inquérito policial ou de outra investigação. "O inquérito policial é dispensável caso haja outro probatório", diz. Ele observa, no entanto, que o promotor de Justiça não é preparado para promover a investigação e a instituição não dispõe do aparato técnico-científico para investigar. "A investigação ainda cabe à polícia, que, em tese, tem treinamento, capacitação e aparelhamento para isso. O MP pode investigar até certo ponto porque, pela norma processual, o titular é o delegado da polícia." Segundo o professor, o MP pode e deve acompanhar as investigações para evitar que a polícia produza provas ilícitas.
Na opinião de Pedro Sérgio dos Santos, as investigações se inverteram no Brasil, deixaram de buscar a inocência do acusado para produzir provas da culpa. "O Estado deve pautar suas investigações pela presunção da inocência e não pela mídia." Segundo Pedro Sérgio dos Santos, ao investigar a polícia se preocupa em responder à mídia, "que prejulga, estipula o culpado". Quanto ao programa de escuta telefônica que teria sido adquirido pelo MP, o advogado observa que qualquer interceptação telefônica precisa de autorização judicial e deve obedecer aos critérios da lei que rege o instrumento. "Não adianta ter o equipamento, tem seguir o rito da lei."
Para o senador e ex-promotor de Justiça Demóstenes Torres (DEM), é legítimo que não só o MP, mas outros órgãos façam investigação. "O Senado faz, o Coaf (Conselho de Controle de Atividade Financeira) faz e são modalidades de investigação admitidas pelo Direito." Mas estas instituições têm um poder de investigação residual, já que a polícia é o órgão específico para promover as investigações. Na opinião do senador, o promotor não pode instaurar o inquérito policial ou querer substituir o delegado. Mas pode investigar o crime organizado. "O ideal seria a parceria entre as duas instituições, a exemplo do que ocorre entre Ministério Público federal e a Polícia Federal, que trabalham muito bem juntos."
Quanto ao Sistema Guardião, Demóstenes Torres afirma que o MP não pode usar instrumentos autoritários sem a autorização judicial. "Se o MP adquiriu o sistema só pode fazer escuta telefônica com a autorização judicial." De toda forma, o senador considera estranho o MP operar um instrumento próprio da polícia. "Se ele tem um poder de investigação residual, se compra um equipamento de escuta é porque quer atuar de forma sistemática." Segundo ele, o que tranqüiliza é que esse tipo de instrumento só pode ser utilizado com autorização de um juiz.
O diretor da Polícia Civil Marcos Martins Machado afirma que o MP já estaria instalando o Sistema Guardião em Goiás e que considera legítimo a sua utilização no combate a lavagem de dinheiro, crime internacional e crime organizado. "Não concebo a idéia de a Justiça autorizar a escuta telefônica de pessoas envolvidas em crime comum." Segundo o presidente da OAB de Goiás, Miguel Cançado, a lei não confere o poder de investigação ao MP e ele considera um grande absurdo a instituição ser portadora de um sistema de grampos. "Isso é a banalização da escuta telefônica, que até o crime organizado já quer."
Apesar de o STF não ter se manifestado em relação ao poder de investigação do MP, o presidente da Associação dos Magistrados de Goiás, Átila Naves do Amaral, acredita que a tendência é o Brasil seguir o modelo mundial, no qual os promotores coordenam a polícia na investigação criminal. "Essa tendência é inevitável visto que o MP lida com os dados da investigação que dão sustentação a ação penal." No entanto, o juiz observa que essa prerrogativa do MP esbarra na Constituição, que reserva às polícias Civil e Federal o comando da investigação penal.
Segundo Átila Amaral, há situações em que a polícia não tem condições de investigar, como nos crimes cometidos no âmbito da polícia. "Afinal, quem vigia o guarda?" Ele lembra que a instituição já tem o controle externo da atividade policial e "atendendo ao interesse da sociedade, a tendência é ser alargada o poder de investigação do MP."
Na opinião de Átila Amaral, se o MP investiga improbidade adminitrativa, é natural que se municie de todo aparato para proceder a investigação, inclusive do sistemas de escuta telefônicas. "Se a bandidagem anda de avião a jato o Estado não pode andar de automóvel." A única ressalva que o juiz faz é em relação à autorização judicial. "Se o MP adquiriu o sistema, sua utilização passará pelo crivo e controle da Justiça."
Sistema araponga
Dentre os instrumentos de interceptação telefônica, o Sistema Guardião, programa de computador capaz de gravar conversas telefônicas e identificar vozes, é o mais usado no Brasil. É o sistema usado pela Procuradoria-Geral da República, que comprou um por 732 mil reais. O governo do Distrito Federal, na gestão de Joaquim Roriz, comprou um programa altamente sofisticado usado pelo serviço secreto de Israel, o Mossad, considerado um dos mais modernos do mundo. A maioria dos sistemas usados no Brasil é importada.
Na prática, a escuta legal começa com a autorização da Justiça, que orienta a operadora telefônica a liberar a linha que é captada pelo Guardião e passa a gravar todas as conversas feitas por meio do aparelho grampeado. O sistema permite cruzar ligações entre as mesmas pessoas a partir das ligações feitas pelo telefone grampeado e para ele. A partir desse primeiro número grampeado outros números de telefones passam a fazer parte do sistema de grampo, criando novas ramificações. Os modelos de escuta telefônica variam de acordo com a capacidade de interceptação de linhas.
De acordo com a legislação brasileira de interceptações telefônicas, Lei 9.296, de 1996, a polícia só pode recorrer a escutas telefônicas quando houver indícios razoáveis de envolvimento em crime punível com prisão e se a prova não puder ser obtida de outra forma.
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