Jornal Opção - Manchete - De: 1º A 7º DE FEVEREIRO 2009 | ||
Em agosto de 2006 entrou em vigor a Lei 11.343 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas — Sisnad. Em linhas gerais, como ficou descrito no texto explicativo da lei, essa normativa se presta a prescrever "medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas". Para o promotor de Justiça Geibson Rezende a forma da lei é perfeita, o único e crucial equívoco foi acabar com a aplicação da pena de reclusão para quem é classificado como usuário de drogas. "Os legisladores não tiveram coragem suficiente para descriminalizar de fato e de direito o uso de drogas e ficaram no meio do caminho entre punir e liberar de vez o uso e regulamentar a venda. O efeito disso é extremamente nefasto para a sociedade, que ainda não sabe como lidar com esse assunto", comenta Geibson. Antes de entrar em vigor, a nova norma passou por discussões homéricas na Câmara dos Deputados e no Senado até ter seu texto finalmente aprovado e ir à sanção presidencial. Para quem está na linha de frente da aplicação da lei e do combate à criminalidade bastaria que um só congressista tivesse frequentado uma delegacia ou um Juizado Especial Criminal para que o texto da lei fosse modificado completamente. À unanimidade profissionais que atuam nessa área consideram que o fato de a lei dizer que usuário de droga é problema de saúde pública e que não deverá ser preso, aumentou o consumo, que fez aumentar o tráfico e que por sua vez aumentou o número de criminosos que atuam nesse ramo, pulverizando as atenções da polícia. Há menos de uma década policiais que atuam no combate a entorpecentes tinham de manter vigilância sobre duas ou pouco mais dezenas de criminosos. Hoje o número de bandidos que atuam na venda e distribuição de drogas na Região Metropolitana de Goiânia passa de 200 e a polícia não conseguiu avançar nessa mesma proporção em número de agentes e delegados para manter o combate. Um delegado da Polícia Federal que conhece com propriedade o assunto informou que o consumo aumentou de forma exponencial o poder dos traficantes que ganham muito mais dinheiro agora e que por isto podem corromper autoridades e pagar advogados mais qualificados para atuar em sua defesa e de seus protegidos. Despreparo — Esse mesmo delegado da PF classifica como irresponsabilidade histórica a vigência da nova lei. Ele explica que o Estado não está preparado para assumir sua função de tratar como questão de saúde pública o indivíduo que é preso com posse de substância entorpecente para uso próprio. "O cidadão usuário precisaria ser encaminhado a um estabelecimento capaz de tratá-lo, o que não existe e que o Estado não disponibiliza". Antes da despenalização deveria ter sido preparado uma ampla base de prevenção e educação para combater o uso de drogas. Na prática, dizer que usuário não vai para a cadeia serviu para fazer crer a quem já apresentava propensão ao crime para que entrasse nessa senda sem qualquer preocupação. Se há consumo, há mercado e no mesmo diapasão existem mercadores para esse tipo de produto. As condições sociais e econômicas do Brasil também dão sua prestimosa contribuição para convergir tudo o que há de ruim e que permita o progresso do macabro comércio de drogas. Um indivíduo que precise trabalhar um mês inteiro para ganhar um salário mínimo, com todos os descontos legais e o esforço que precisa fazer diariamente para ganhar honestamente seu pagamento sentirá forte atração para ir para o crime. A equação é simples: um carregador de pequenas porções de drogas — em geral maconha, merla ou crack — conhecido como mula, ganha até R$ 500 por semana, ou uma média de R$ 2.000 por mês. É mais de quatro vezes o que ele ganharia trabalhando com carteira assinada e esperando para receber no final do mês. Igualmente um traficante tem à sua frente uma possibilidade de ganhar mais dinheiro correndo um risco muito menor comprando quantidades fáceis de carregar. Isto tem provocado um fenômeno inédito na prática de crimes no Brasil, como explica o titular da Delegacia Estadual de Repressão a Narcóticos em Goiás (Denarc), delegado Izaías Araújo Pinheiro. A Polícia Civil identificou nos últimos anos uma migração de criminosos de outras áreas para o tráfico de drogas. Por exemplo, um indivíduo que era especializado em assalto a banco ou outros crimes contra o patrimônio, todos mais violentos que o tráfico, passou a praticar a venda de drogas. Em um assalto a possibilidade de trocar tiros e de morrer durante uma perseguição é muito grande. Assim, um criminoso pode auferir um lucro superior com o tráfico. Com carro furtado e levado até a Bolívia — cuja fronteira fica distante de Goiás pouco mais de um dia de viagem — pode trocá-lo por 10 quilos de pasta-base de cocaína. Em sua viagem de volta ele pode vir de ônibus e com um pouco de sorte dificilmente será apanhado. Segundo dados da Denarc somente 10 por cento dos traficantes que voltam da fronteira com drogas são presos. Então, 90 por cento das cargas chegam ao seu destino. Com um quilo de pasta base o traficante consegue preparar, com alguns aditivos, outros cinco quilos. Dessa forma os 10 quilos iniciais viram 50 quilos, o que em dinheiro apurado no final das contas dará uma média de R$ 50 mil de lucro para o traficante. É quantia consideravelmente superior a outras práticas criminosas como assalto, roubo e seqüestro. Para o delegado Izaías a despenalização foi um incentivo sem precedentes para quem já tinha propensão ao crime e o aparato policial deve se reciclar constantemente para combater o fenômeno. Como uma desgraça nunca vem sozinha, mas sim acompanhada de outra, a sucessão de problemas é impensável. O fenômeno que tem acompanhado a evolução do tráfico é o envolvimento de famílias inteiras no tráfico. Em Goiânia, no final do ano passado, um caso foi emblemático. O pai, traficante, foi morto por rivais de outra boca-de-fumo. A mãe assumiu os negócios e pouco tempo depois também foi assassinada. O filho de 12 anos se tornou o dono da boca e poucas semanas após foi morto a tiros na Avenida Goiás-Norte na frente de testemunhas. Avanços e desacertos "Isto que é a grande praga da sociedade: ter em seu favor uma burocracia imbecil", sentencia o delegado Izaías. Ele explica que as recentes lambanças envolvendo disputas na mídia e na Justiça por causa de interceptações telefônicas fez com que juízes se tornassem mais ariscos às concessões de autorização para grampos telefônicos. Segundo o titular da Denarc o celular pré-pago é a principal ferramenta para um traficante e quando a polícia pede autorização para monitorar suas ligações a Justiça empata o serviço por mais de uma semana. É prazo mais que suficiente para que ele se desfaça daquele número que teria de ser interceptado e passe a operar o crime através de outro. "A bandidagem está muito na frente da polícia em rapidez de atuação. Nós ficamos de pés e mãos atados pela burocracia e quem perde com isto é a sociedade", frisa o delegado. O promotor Geibson Rezende considera que os criminosos estejam zombando da polícia, do Ministério Público, da Justiça e da sociedade. As estatísticas de prisões de traficantes se refletem nos feitos que chegam constantemente na Justiça. Geibson Rezende é titular de um Juizado Especial Criminal, instância para onde são mandados indivíduos presos classificados como usuários. Somente no juizado onde atua Geibson a média é de 15 novos casos por semana que chegam para realizar audiência depois de ter sido feito o simplório Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). Em Goiânia existem seis juizados especiais criminais, o que nos remete à consideração de que são 60 casos em cada um e 360 no total, na média, ou mais de 4.320 todo ano. "A reincidência é muito grande e os indivíduos presos mais de uma vez que comparecem ao juizado a partir da segunda vez já não têm mais medo algum. Já aconteceu o disparate de um usuário dizer na nossa cara que não queria deixar de usar droga de jeito algum", explica o promotor. A sensação de impunidade impulsiona os indivíduos a comprar drogas sempre, a traficar e não se intimidar com o aparelho repressor. Não bastasse todo esse disparate acontecem as aberrações produzidas pela própria Justiça como no caso de desclassificar tipificações de tráfico para uso pura e simplesmente. Um indivíduo preso com 300 gramas de cocaína, quantia difícil de ser considerada para uso próprio, teve sua qualificação rebaixada para usuário, o que lhe tirou por completo o temor de ir para a cadeia. A prisão também não se presta a qualquer efeito pedagógico para inibir a atuação de criminosos no tráfico de entorpecentes. Nos Estados Unidos um traficante é apenado em média a 23 anos de reclusão em regime fechado, dificilmente consegue progredir para um regime mais brando antes dos 15 anos e irá para a cadeia trabalhar de fato. No Brasil a média das condenações é de sete a nove anos e com a progressão de regime ele ficará no máximo dois anos no regime fechado, antes de ir para o semi-aberto e daí para o retorno à delinquência. Em resumo, leis frouxas e que beneficiam criminosos fazem a alegria de quem quer progredir no crime e provoca o desespero da sociedade refém de situações absurdas. Na penúltima semana de dezembro do ano passado em uma grande atuação de policiais da Denarc, sob o comando do delegado Izaías Pinheiro, prenderam uma quadrilha do Mato Grosso que estava trazendo 15 quilos de pasta-base de cocaína para Goiás. Os traficantes conseguiram relaxar o flagrante e foram passar as festas em casa. Somente depois que o inquérito foi concluído, a Justiça foi devidamente informada da desfaçatez com que os bandidos tratavam o juiz, que relaxou sua prisão. A prisão foi mantida mas ninguém mais foi preso. PARTE MAIS NEVRÁLGICA DA LEI QUE DESPENALIZA O USO DE ENTORPECENTE CAPÍTULO III DOS CRIMES E DAS PENAS Art. 27... Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I — advertência sobre os efeitos das drogas; II — prestação de serviços à comunidade; III — medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. ' 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. ' 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. ' 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses. ' 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses. ' 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. ' 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I - admoestação verbal; II - multa. ' 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado |