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Prisão em Flagrante - Um apagão juridico - 15/11/2009

Após iniciar o movimento grevista os policiais civis de Goiás por diversas vezes foram questionados acerca de não lavrarem Auto de Prisão em Flagrante sem a presença da autoridade policial (Delegado de Polícia). Também ficaram estarrecidos com repetidas notícias de “investigações feitas pela P-2 ou PM-2”. Vejo que as dúvidas pairam no campo da legalidade e da validade tanto do primeiro quanto do segundo assunto.

             Pois bem, a orientação inicial foi  para que todos os procedimentos que exija a presença do Delegado só se efetive com sua presença, é uma questão legal, o Código de Processo Penal exige. E autoridade policial é só e somente só o Delegado de Polícia, o que se confirma com a redação do Art, 4º do Código de Processo Penal (CPP ), salvo as exceções. Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”  Grifo nosso  .Outra exceção está no Art. 144, $4º da Constituição Federal, assim grafado:  “§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.  Grifei.  

Resta evidente que existem outras autoridades, contudo, autoridade policial é o Delegado de Polícia, assim como autoridade judiciária é o juiz. Sobre o tema já se manifestou vários tribunais (inclusive superior) e não há qualquer dúvida, já está pacificado, autoridade policial é o Delegado de Polícia com investidura legal. Ademais, se a lei assim  exige, é direito do cidadão conduzido à delegacia em situação de flagrante ser autuado pela autoridade competente,  nos exatos limites legais. Desse modo, é bom que os advogados fiquem atentos para essas anomalias que ocorre com frequência em razão da falta de Delegados de Polícia. Nota: a nomeação de 20% (vinte por cento) dos futuros Delegados de Polícia aprovados no último concurso, de pouco adiantará, porque a situação é caótica e não será remediada nem mesmo com nomeação da totalidade dos aprovados (é preciso aumentar o quantitativo). Basta dizer que em quase todas as Regionais de Polícia do estado o quadro é deficitário, há região em que um Delegado de Polícia responde por quase duas dezenas de municípios, principalmente nos finais de semana e feriados, esta é a realidade do Governo para com a população.

            De volta ao tema ora exposto, portanto, o fato de o Estado não ser capaz de suprir a demanda de delegados não obriga ao Escrivão ou Agente de Polícia a fazer às vezes do Delegado, suprindo a omissão do Estado. Ao contrário do que parece (se o policial fizer os procedimentos próprios das funções do cargo de delegado), estará cometendo crime de no mínimo desvio ou usurpação de função (há entendimento que o servidor público também pode usurpar função). Assim entende a jurisprudência e a doutrina.

            Logo, ressalvada as exceções consignadas na Lei Processual Brasileira, por exemplo,  Art. 4º Parágrafo único “A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função”. Negritamos. Ademais disso, autoridade policial é o Delegado de Polícia, e não cabe a nem um outro servidor, seja civil ou militar fazer suas vezes. Se por um acaso isso ocorrer (e ocorre), temos que o ato é nulo de pleno direito, devendo ser corrigido pela autoridade judiciária. E é bom que se diga, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que representa o Ministério Privado no nosso ordenamento jurídico, tem legitimidade para postular a nulidade do ato e exigir responsabilização em eventual futuro processo, de quem o praticou fora das normas, e poderá ocorrer na esfera penal, civil ou administrativa. Eis que reza a Constituição: Art. 133. “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Sem negrito no original.

            A polícia Judiciária (ao menos a de Goiás), nunca alcançou o lugar que merece, basta verificar em seus próprios anais . Destarte, o Estado ao longo da história da  existência da Polícia judiciária, tratou-a com absoluto descaso, sem levar em conta a importância que representa para concretizar a primeira fase do processo penal ou pré processual brasileiro –  o inquérito Policial – onde não deveria ser admitido qualquer erro. Por assim dizer, deveria ter merecido melhor tratamento dos Governos por lidar com direitos, bens e garantias individuais.

            Para sabermos o volume de trabalho a cargo da Polícia Judiciária, basta verificar o seguinte: Todas as prisões realizadas pela Polícia Militar e todas as prisões realizadas pela Polícia Rodoviária Federal ou Polícia Federal, que sejam  de competência da Justiça Estadual, são encaminhadas para a Polícia Judiciária, bem como todas as ocorrências policiais (em que não haja prisão em flagrante), porque estão no campo de suas atribuições. Portanto, a Polícia Judiciária mesmo tendo menos de 1/3 do efetivo da Policia Militar (CONSTITUCIONALMENTE OSTENSIVA/PREVENTIVA) é a responsável para dar continuidade ao que a PM iniciou e às demais  ocorrências. Não precisa esforço para saber que toda essa contingência desagua nas delegacias.

             Tudo que foi dito em linhas pretéritas acerca das ilegalidade aportam no campo da nulidade. Admitir que são válidos os flagrantes realizados por agentes desprovidos dos princípios de autoritariedade, é confirmar a prática ilegal de condutas vedadas pelo ordenamento pátrio. Portanto, não apenas o flagrante, mas todos os demais atos que se segue no Inquérito Policial que exige a presença física do Delegado de Polícia, é nulo, absolutamente nulo. Ao pé da letra é isso. Contudo, tanto o Ministério público quanto o poder Judiciário, talvez pensando em proteger a sociedade, com um mínimo do que necessita, em vista da flagrante omissão do Governo, acaba por fazer vistas grossas e  validam essas anomalias, quando o correto seria refutar  os atos ilegais e cobrar do Estado medidas concretas para sanar o problema. Nesse diapasão pensamos que  quem contribui com a eficácia de erros e/ou ilegalidade depois de tomar conhecimento de sua origem e nada faz, coaduna com os efeitos decorrentes.

             Ainda sobre Prisão em Flagrante, há outro absurdo jurídico largamente utilizado no Brasil, citado no início deste texto,  e avalizado por Delegados de Polícia, Membros do Ministério Público e do Poder Judiciário (inaceitável juridicamente, mas que na prática é fato). Trata-se das “investigações” realizadas pelas conhecidas  P-2 ou PM-2.  Sobre o tema, duas notas.

            Se estamos em um Estado legalista (em que o Estado e os cidadãos obedecem a lei), obviamente devemos agir conforme as leis que regem a nação, é imposição erga omnes, despiciendo dizer que alcança a todos. Disso  depreende-se que está vedado agir por conveniência ou por questões subjetivas. Na democracia, todos os direitos e deveres encontram limites justamente no ordenamento que a informa. Um dos elementos que confere efetividade à segurança jurídica é a certeza da obediência às Leis, se não temos essa certeza, não há que nela se falar, pois que inexiste, ou só existe teoricamente.

            Vejamos: A primeira questão diz respeito sobre a legitimidade e legalidade das “investigações” realizadas pelos serviços reservados das Policias Militares do Brasil, o que é comum se ouvir e ver na imprensa e mesmo in loco. Não há, no ordenamento jurídico nacional nenhum dispositivo legal que autorize a Policia Militar a realizar as atribuições  de polícia judiciária. As exceções, em que podem agir, já se encontram estampadas na Lei, é lá não há esta previsão. A essas importantes corporações de segurança a Constituição reservou suas atribuições no mesmo Art. 144,  §5º,  - às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil”.  Na norma Constitucional não há previsão de que a corporação militar exerça  atribuição de Polícia Judiciária. Logo, ao agir de tal modo, invade o campo de atuação da Polícia Judiciária. Se existe atribuições definidas em lei e se a própria Lei Maior já delineia as atribuições de cada corporação, quando uma invade o espaço de atuação da outra, não pode ter esses absurdos validados sob manto de que falta pessoal, que isso, que aquilo. Tanto a Polícia judiciária quanto a Polícia Militar compõem o sistema de segurança pública, entretanto, há que se observar a limitações Constitucionais e legais. Podemos dizer, são remédios diferentes indicados para o mesmo mal, ministrados por  vias próprias, segundo a prescrição destinada a cada uma.

            Em segundo, reportamos a outra prática comum em nosso Estado, uma agressão às normas penais, em especial do processo penal. Ocorre que integrantes do serviço reservado da Polícia Militar, também chamados de P-2, PM-2 e até de “Agentes de Inteligência”, após suas “investigações” efetuam prisões, só que eles não comparecem  à autoridade policial para  apresentar o preso, entregam-no aos componentes de uma viatura caracterizada que finalmente faz a apresentação do conduzido a autoridade policial. Esta é mais uma aberração jurídica admitida em nosso meio. Segundo ensina o Art. 304 do CPP, in verbis “ Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto”.  Aqui quer dizer a lei que o condutor é quem fez a prisão,  tratando-se essa medida de segregação da liberdade, esta, um dos direitos mais elementares e importante para o homem. A regra é que a prisão decorra de sentença, não se pode admitir a banalização da prisão em flagrante, pois esta indubitavelmente trata-se de exceção extrema ao direito de liberdade.

            A meu sentir, embora não seja razoável admitir “investigações” realizadas por pessoas estranhas, também não o é  que criminosos se aproveitem de tal situação. De todo modo, afirmo que essas práticas de que falei, não encontram guarida em nosso ordenamento jurídico. Do ponto de vista da legalidade, penso se-las absolutamente nulas.

            São por essas e  outras que a Polícia Judiciária aos poucos vem perdendo seu espaço, decorre da falta de gestão, do compromisso de seus servidores, do olhar leniente das autoridades que a compõe e daquelas a quem cabe a fiscalização.

            É preciso consignar, o que foi dito nada tem que desabone a Polícia Militar, temos convicção de sua importância e por  ela nutrimos respeito e consideração. Nosso texto se aplica quanto as questões de ordem legal. Se for possível atribuir alguma culpa, deve ser a quem deveria fazer e não faz, e não a quem não tendo obrigação o faz (ainda que usurpando), isto, imagino que em decorrência da omissão do Estado, das lacunas deixadas pela conivência de quem deveria fiscalizar, e a desídia instalada há muito no seio da Polícia Judiciária de Goiás, levando-a a uma situação de quase falência.

            Os temas sobre os quais discorremos, interessa tanto aos policiais (pois afetam suas atribuições), quanto para a sociedade em geral, por atingir direitos do cidadão.

            Do exposto, me esposo na ratificação insofismável de tudo que foi aduzido, e com a devida vênia, lanço mão do título do livro do Professor Pedro Sérgio, para dizer então,  “QUE ME DESMINTA O FARAÓ”.

 

Autor: José Virgílio Dias de Sousa, Agente de Polícia da 1ª Classe, Vice-Presidente da União Goiana dos Policiais Civis, Bacharel em Direito (Universidade Paulista), Pós Graduado em Direito Constitucional e Administrativo - com Docência Universitária (GEP–UCG) e atualização e Ciências Criminais (Rede LFG- IELF Goiânia).