Quem lida com o problema aponta causas como baixo nível da educação no País, falta de amor nas relações humanas e a priorização do consumismo na sociedade
CEZAR SANTOS
Filho mata mãe a machadadas. Pai queima filho de 1 ano com cigarro. Patroa tortura empregada de 11 anos. Rapaz mata e esquarteja namorada. Filha põe namorado para matar o pai e a mãe dela. Mãe enterra vivo filho recém-nascido... Notícias assim estampam jornais e programas de TV e rádio. E nem precisam ser jornais ou programas popularescos, mesmo os veículos ditos sérios inevitavelmente trazem esses tipo de manchete. A razão é simples, esses fatos fazem parte do nosso cotidiano, um cotidiano de violência que parece aumentar a cada dia.
Assassinatos, assaltos, latrocínios, estupros, golpes, falcatruas, mortes nas rodovias, motoristas bêbados matando famílias inteiras... A violência, o crime, o horror estão estampados nas manchetes. Os jornais de circulação diária em Goiânia trazem praticamente todos os dias notícias de execuções na periferia da Capital — já foram cerca de 60 assassinatos na Grande Goiânia neste iniciante 2010. Pode-se imaginar que o índice de horror vai subir exponencialmente ao fim deste carnaval em curso.
É possível um mundo melhor, menos violento, do que esse que a nossa sociedade engendrou? Não, e a razão é simples: todo mundo ganha com a violência. A opinião é de uma pessoa que lida com a violência de forma direta, o advogado criminalista Pedro Sérgio dos Santos, graduado em Filosofia e Direito, mestre e doutor em Direito, escritor, professor das Universidades Federal (UFG) e Pontifícia Católica de Goiás (PUC-GO).
Pedro Sérgio diz que a violência dá lucro. “O repórter está aí fazendo matéria, gastando horas de serviço com violência. O jornal gasta tinta e papel com o tema e faz isso porque violência vende”, diz o advogado, numa visão que se pode chamar de pessimista, denotando certa descrença em relação a possível melhoria no quadro atual.
“Eu, que sou advogado criminalista, trabalho com violência. O feirante que vende tomate para quem trabalha na casa de um policial, um médico que atende vítimas da violência, que têm seus salários por trabalhar com violência, também depende. Direta ou indiretamente, grande parte da população brasileira lida com o crime e com a violência”, afirma.
E diz mais: “As pessoas falam mal do crime e da violência, mas ela sustenta muita gente. O que sempre digo, tem o lado honesto da violência, do crime, não tem só o lado desonesto. Hoje tem mais gente trabalhando nas empresas de segurança privada do que na segurança pública.”
O desânimo do advogado com uma possibilidade humanista, mais positiva, fica escancarado: “Acho até besteira discutir isso, sem querer menosprezar o trabalho dos jornalistas. Mas do ponto de vista de contribuição social, não é com matéria no jornal que se combate violência. Outro dia eu falei num debate no rádio que eles estavam procurando as pessoas erradas. Quem tem de discutir a violência não é delegado, nem secretário de segurança pública, nem advogados. Quem tem de discutir violência é secretário de Educação, ministro de Educação, ministro da Saúde, ministro do Trabalho.”
Dedo na ferida
Pedro Sérgio põe o dedo na ferida ao dizer que a escola no Brasil é fraca, prioriza menos a qualidade que a quantidade. “A ideia de escola de tempo integral no Brasil hoje ainda é uma utopia, está mais no discurso que na prática. A sociedade não cobra escola de tempo integral, mas quer presídio em tempo integral.”
E se a escola é fraca, de outro lado a mídia completa a “desgraceira”, como diz o advogado. “Da hora que abre, até a hora que fecha, você vê basicamente violência na TV. Mesmo programas infantis são violentos. No desenho animado se vê bichinho batendo no outro. A mídia se corrompeu mesmo, principalmente a TV, que é concessão pública mas não atende o interesse público. Ela atende muito mais os interesses privados.”
E a descrença do criminalista se estende na crítica ao governo. “Tem-se dois tipos de violência. Uma não-institucionalizada, como furto, roubo e assalto. E outra que começa a se institucionalizar. Por exemplo, o Plano Nacional de Direitos Humanos do governo fala em autorizar alguns crimes como aborto. Outra incoerência, na semana em que se lança campanha contra tráfico de seres humanos, parlamentares do PT, o partido que está no poder, propõem leis que legalizam a prostituição. A origem do tráfico de pessoas está justamente na prostituição. O governo é contraditório.”
Ele comenta a onda de execuções na Grande Goiânia, lembrando que é basicamente uma onda de crime e de violência com envolvimento da juventude. “A população carcerária tem uma maioria de jovens entre 18 e 25 anos. Também entre os assassinados neste início de ano, a maioria é de jovens. Isso se deve a uma questão de geração de valores.”
A violência está no ser humano, é inerente ao homem. Quem afirma é o psicanalista clínico e professor Roberto Mello, um dos fundadores da Fazenda Freudiana e membro do Centro de Estudos e Psicanálise para Infância e Adolescência (Cepia). Ao fazer uma abordagem mais intelectualizada do tema, ele lembra que há uma coletânea de cartas trocadas entre Sigmund Freud (1856-1939) e Albert Einstein (1879-1955) no período entre as duas Grandes Guerras Mundiais, em que eles debatem a questão da violência. “É um leitura muito lúcida de ambos, dois gênios da humanidade, que se interrogam do por que a humanidade gosta de fazer guerra, que é a violência elevada ao seu limite máximo, a violência por atacado.”
Mello diz que o pai da psicanálise não dourou a pílula. Ele descreveu a condição humana como trágica, em meio a todas as deficiências sociais. Considerava que somos constituídos por conflitos, conosco mesmo e com os outros. “Freud, esse sujeito ateu, materialista, muito cético a respeito de uma civilização que tivesse condição de superar esse grande mal-estar, o conflito, achava que talvez uma saída para combater a guerra seria o desenvolvimento da cultura. Ele apontava aí a saída sublimatória para o homem, a civilização contra a agressividade e a violência. Se a violência nos é inerente, temos de domá-la em nós mesmos, sublimarmos nossa violência, a pulsão de vida e de morte que todos nós temos.”
Deixando a abordagem mais intelectualizada de lado, Roberto Mello afirma que está faltando amor nas relações humanas: “Estamos em crise de amor. O amor está tão desvalorizado nas relações humanas que esse processo de violência se agudiza. Vivemos numa sociedade que valoriza o gozo, a pessoa se sente compelida a gozar o tempo todo, sem parar, até o máximo. Isso é um componente dessa crise, tem um efeito exasperante, você se submeter a essa ideologia de que tem de gozar a qualquer custo e em qualquer momento.”
Ele cita o exemplo de crimes no trânsito, muitas vezes por causa de pequenos acidentes. “No trânsito prevalece uma atitude paranóica, de cada um ser o perseguidor do outro. Como meio de cultura essa paranoia fica agravada e alimentada por detalhes, por exemplo, como esses vidros escuros que colocam nos carros. Isso isola, a pessoa não se dirige mais para o outro, não olha para o outro para combinar a manobra que se faz no trânsito. Não se vê quem está do lado, quem está na frente, quem está atrás. É uma coisa meio fantasmagórica. Isso se configura também na arquitetura do perigo, com condomínios fechados.”
Epidemia
O psiquiatra Lourival Belém Júnior, especialista em Toxicomanias e Marginalidades pelo Centro Médico Marmottan de Paris, é outro profissional que vê a violência de perto, ao lidar com vítimas e perpetradores dela. “A criminalidade parece ter virado uma epidemia. Para todos os lados vê-se um número muito grande de crimes sendo cometidos. Me parece que as causas disso devem ser buscadas especialmente na forma de organização da sociedade. Não só pela questão específica das injustiças ou da exploração do ser humano, mas é a forma pela qual a gente vem se constituindo.”
No caso de nossa Capital, Belém Júnior lembra que trabalha com a periferia, seja como médico, seja como documentarista. “A impressão que tenho é que existe uma situação de guerra. Não sei se estou sendo um tanto apocalíptico. Mas é uma situação de guerra que se vê na periferia de Goiânia, um absoluto descontrole. O sofrimento daquelas pessoas é muito grande.”
Ele afirma que não é tanto pelo fato das pessoas serem pobres. “Claro que não ter dinheiro é uma carga muito pesada na sua identidade social, mas mais do que isso, essas pessoas se veem sem valores por que têm esses valores questionados de forma imprópria.” O psiquiatra lembra que normalmente esses pais e filhos vieram de uma região, de uma cultura e forma de ver o mundo, de uma forma de resolver seus problemas, mesmo que de maneira precária, que tinha sentido para elas.
“Aqui eles estão numa cidade em que não têm como dar respostas às carências de suas famílias. Ao não conseguir dar essas respostas, essas pessoas veem diminuído seu valor social, e passam por um processo muito complexo, no que o psicanalista Helio Pelegrino chamava de rompimento do pacto social. Quando se rompe esse pacto, volta o que foi recalcado, que vem sempre de forma ressentida, violenta, sem compreensão da dor do outro. São as pulsões vindo à tona. Isso se volta contra a própria sociedade.”
Mesmo que essas pessoas tenham o básico, como saúde, lazer mesmo precário, elas vivem numa sociedade de consumo, que cria a necessidade cada vez maior de bens, e elas não conseguem consumir. “Isso afeta a identidade social. Imagine um jovem nesse processo, sem poder consumir, tendo de recalcar sua agressividade — agressividade que todos nós temos, sem exceção, mas que a maioria de nós consegue reprimir. É muito mais fácil que esse jovem rompa o pacto social e transgrida as leis.”
Cultura
Segundo Lourival Belém, as coisas se complicam um pouco mais porque temos poucas condições de lidar com esses problemas. “A cultura, que permite ao indivíduo sublimar suas pulsões agressivas, é artesanal, é difícil, dá trabalho. Já a tecnologia oferece respostas imediatas, prazerosas. É Viagra, ecstasy, um mundo de drogas, consumo de bens materiais, que dão força, dão fuga dos problemas.”
O pacto social torna a vida em sociedade possível, é a tese hobbesiana — de Thomas Hobbes (1588-1679), matemático, teórico político e filósofo inglês, autor de “Leviatã” — que prega a submissão do indivíduo às leis do Estado constituído para que a convivência seja possível. “É o pacto civilizatório, que se resume em eu conter minha violência, você conter a sua, de acordo com as leis, e então nós criarmos um mundo melhor, harmônico, de beleza, de alegria.”
Segundo Belém, esse processo civilizatório está em crise. “Temos barbaridades, como, por exemplo, os nossos presídios, uma coisa da Idade Média. Não demos conta de criar coisa melhor.”
Lourival lembra que a sociedade cobra da polícia, por exemplo, ação contra a violência. Mas a polícia também é vítima desse sistema. “A polícia também sofre muito com esse estado de coisas. A sociedade cobra muito do aparato policial. Mas vejam-se os índices de policiais que adoecem, que precisam se afastar do trabalho para tratamento. É desumano o que se pede à polícia.”
Então estamos mesmo afundando na barbárie? O senador Demóstenes Torres (DEM), ex-secretário de Justiça e Segurança Pública e promotor de carreira, diz que no Brasil ninguém fica preso por muito tempo. Segundo ele, é preciso mudar essa filosofia que foi acentuada no governo Lula e que ele considera retrógrada, ultrapassada e ineficiente. “Essa filosofia aniquilou com a repressão. Criminalidade tem de ser reprimida. Essa concepção se baseia na crença de que crime é causado por pobreza, o que é uma bobagem. De delegados a ministro do Supremo advogam que a pobreza é causa da criminalidade, falam como se isso fosse uma grande verdade, um dogma. E eu já falei isso várias vezes. Se fosse assim rico não cometeria crime, e, no entanto vemos delinquentes ricos, jovens de classe média praticando crimes.”
O senador diz que estudos apontam que crime tem mais de 100 causas, principalmente por razões individuais. “Não adianta apenas tratamento social. O governo tem de investir em escolas de tempo integral, melhorar a capacidade operacional das policiais e prender, prender sempre e punir com rigor.”
Ele critica o rumo que o País está tomando na questão da legislação. “Infelizmente, o Brasil está indo na contramão. Os países que têm tido êxito no combate à violência, notadamente nos Estados Unidos, a política é de encarceramento, prisão, dos deliquentes, principalmente aqueles que cometem crimes mais graves. Além de dotar a Justiça de mais agilidade, com fianças altas, monitoramento eletrônico, videoconferência. Por isso no Brasil tem de haver uma reforma completa. Mas na mentalidade atual não se encontram pessoas que pensam assim.”