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Orlando Zaccone (foto) - 21/12/2010

O delegado Orlando Zaccone foi um dos painelistas da mesa “A década do medo: mídia, violência e UPP”,  um dos temas mais esperados pelos participantes do 16º Curso Anual do NPC, já que o tema violência não saiu das páginas dos jornais cariocas, principalmente nos dias do curso. Autor do livro Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas, Zaconne é responsável pelo Núcleo de Controle de Presos da Polícia Civil do Rio de Janeiro, setor que coordena as políticas junto às unidades carcerárias da Polícia Civil.  

Por Katia Marko e Ana Lúcia Ribeiro 

O que você achou de participar de um encontro que reúne militantes sindicais e populares? Orlando Zaconne - Foi maravilhoso. Só de ter o meu nome lembrado e como policial ser convidado para um evento ligado aos movimentos sociais e sindicais já é uma grande honra. Pois é um reconhecimento de que a polícia também pode ter uma participação junto aos interesses populares. Eu penso que essa é a grande virada que a gente tem que dar. Não existe sociedade, dentro dessa forma de organização que nós estamos hoje, sem polícia. Pode até ter Estado sem exército, agora Estado sem polícia não existe. Então, se é uma instituição presente na forma de organização das nossas sociedades, nós temos que aproximá-la da sociedade e não do Estado. Acho fundamental os policiais participarem dos debates dos movimentos populares e dos sindicatos. Porque a polícia é estado de exceção puro. Ela tem a decisão, e a decisão da polícia também pode ser, em algum momento, favorável aos interesses populares, eu acredito nisso. 

Mas essa visão é uma exceção na polícia?

Zaconne - É, mas as exceções podem virar regra. Historicamente a polícia reproduz o "status quo". As forças armadas também, mas a gente já teve em vários momentos na história do nosso país, as forças armadas se aliando aos interesses populares, participando de movimentos populares. 

Mas as pessoas têm medo da polícia...

Zaconne - Sim, mas isso depende hoje de uma luta interna de nós policiais no sentido de começarmos a nos aproximar desse outro jogo, que não é do jogo dos interesses das razões do Estado, dos grupos dominantes, mas sim dos interesses populares. Eu acredito que isso é possível. Até porque os policias são oriundos das classes populares. Eu mesmo, meu pai é filho de imigrante italiano que veio para o Brasil pobre. E os policiais hoje são recrutados nos mesmos setores populares dos criminosos. A grande maioria dos policiais militares, principalmente os que estão na base da corporação, os soldados, os cabos, são oriundos das favelas. 

Depois do Tropa de Elite 1, o pessoal da  favela dizia que a meninada não queria mais ser traficante, queria ser soldado do BOPE. O quanto é real essa atratividade da polícia e do BOPE pra essa galera?

Zaconne - É lógico que a violência e os armamentos representam poder. Tem o aspecto da subjetividade que atrai, mas agora a questão é a seguinte: esses garotos vão querer ser policiais pra quê? Pra trabalharem em beneficio das populações dos guetos, de onde eles vieram, ou contra? Então, a questão é essa, o importante não é o fato deles serem oriundos desse ambiente, é o que, quais são as funções que eles vão exercer na polícia. Por isso que eu falei no debate que pra mim hoje pior do que o desvio das funções da polícia são as funções da polícia. Quando se fala em desvios da função, como a corrupção, é preciso dizer que a corrupção policial está inserida na corrupção da estrutura do Estado. Corrupção na polícia é coisa de criança. Prostituição, jogo, droga, perto do que a gente sabe que existe de corrupção na estrutura do Estado não é nada. Mas se reforça sempre o discurso de purificação das corporações através do combate da corrupção justamente para colocar o desvio como problema, quando na verdade o problema da polícia não é o desvio, o problema da polícia é a função. O que a gente tem que discutir são as funções da polícia e eu acho que esse debate interno entre os policiais pode ajudar a que as forças policiais se coloquem, é lógico, a policia não vai fazer uma revolução... 

Mas esse debate já está existindo?

Zaconne - Existem policiais debatendo, eu sou um exemplo disso. Eu tenho notícias de haver um debate no Maranhão, no Rio Grande do Sul. No território nacional tem policiais que estão com esse questionamento. E eu acho que uma hora, esses policiais vão conseguir se reunir pra tentar um novo projeto. 

É mais difícil um debate dentro da polícia? Tem um sistema de repressão interna?

Zaconne - Tem, porque foram feitos mecanismos que esvaziaram o debate da polícia. Os primeiros sete anos da academia de polícia entendeu o policial como uma máquina de guerra. Ele não é visto como uma pessoa que vai pensar a segurança pública, até porque se apropriaram. 

Mas eles podem falar? Porque tenho a impressão de que eles têm medo de falar...

Zaconne - Sim, eles têm medo. O policial não tem uma rede de proteção, como um promotor, um juiz. O juiz e o promotor têm garantias constitucionais, coisas que o policial não tem. O policial por uma decisão política pode ser retirado a qualquer momento da função que ele ocupa, ao contrário de um juiz. Então, acho que também são questões a serem discutidas, porque há todo um debate pra uma lei orgânica das policias, aos moldes do que acontece com a Lei Orgânica da Magistratura do Ministério Público que vá buscar também algumas garantias de proteção aos policiais frente ao poder político. Mas isso também é um perigo, imagina no dia em que a polícia tiver uma certa autonomia em relação ao poder político? Agora, quem tem que brigar por isso, quem tem que enxergar que isso é bom não são só os policiais, é a sociedade. 

Nós vemos uma reatividade dos movimentos sociais à polícia...

Zaconne – Mas isso é justamente pela falta de visão de que a polícia é necessária na forma de sociedade que temos hoje. E não tenho nada contra as utopias, eu também sonho com uma sociedade sem estado. O que nós temos que pensar é que polícia nós queremos. A sociedade precisa debater a importância da polícia como uma aliada da sociedade.  

Mas nós vemos toda uma ação policial que leva a essa reação negativa. Como que se constrói dentro da polícia essa visão de criminalização da pobreza?

Zaconne – Essa é a função da polícia. Não é o desvio. A função da polícia é justamente fazer essa separação do que é ilegal e o que é legal. Essas funções é que precisam ser debatidas. Por que hoje a grande maioria dos presos são acusados por tráfico e roubo? Será que existe só tráfico e roubo? Mas aí podemos entrar em outra discussão. Então vamos ampliar esse poder punitivo para as classes sociais que não são atingidas por esse processo seletivo ou vamos fazer uma redução de danos? Que é o que eu proponho. Por exemplo, eu fui em um debate em que um deputado que já atuou na área de segurança, não quero citar o nome, disse que iria propor no Congresso uma lei para aumentar a pena de pessoas com nível superior como uma forma de isonomia nessa seletividade que é desigual. Eu disse que isso não resolveria, pois seria muito pouco aplicado. O melhor seria fazer o contrário, uma proposta de lei que reduzisse a pena daqueles que não têm ensino fundamental. Mas aí também é o canto da sereia onde, as vezes, os movimentos sociais ficam iludidos. Essas políticas repressivas, muitas vezes, são questionadas pela esquerda somente pela seleção desigual como se aumentássemos a repressão para outros setores a questão estaria resolvida. A repressão não é a única forma de controle social. Nós temos que começar a discutir na sociedade outras formas não repressivas de controle social. Existe um fetichismo de que a polícia vai resolver toda a desordem e isso é no mundo inteiro. Ninguém questiona isso. Mas as áreas sociais e econômica do Estado também têm que ser questionadas. A polícia não vai dar conta de todo o desmonte que foi feito. Então, essa aproximação da sociedade com a polícia também é para acabar um pouco com esse fetichismo. Nós não somos salvadores da pátria. Fonte: Sítio Núcleo Piratininga de Comunicação