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Quando a greve se torna mais cruel do que a morte - 06/08/2012

Sol de uma manhã do fim de julho, plena segunda-feira, corre-corre das pessoas e máquinas no trânsito e, na Avenida T-10, um alvoroço ali, logo perto do Goiânia Shop­ping. Era gente cercando a cena de um acidente horrível e que deixaria uma lembrança difícil de apagar da memória dos que passavam pelo local: o corpo da jovem Gabriela Rodrigues, uma designer de 23 anos que morreu quando voltava para casa na madrugada da segunda-feira, 30, depois de se divertir em uma boate.

No início da madrugada, Ga­briela deveria ter tido alguma razão — alguns falam em briga com o namorado, outros dizem que ela estava descompromissada — para sair abruptamente da casa de diversões. Acelerou seu Citröen Air Cross e chegou ao cruzamento da Avenida T-10 com a Rua T-15 em altíssima velocidade. Perdeu o controle do carro, que se espatifou con­tra o muro de um posto de combustíveis. Morreu na hora.

Poderia ser uma triste tragédia a mais no trânsito caótico e louco de uma capital tão nova ainda. Mas se tornou algo bem maior e mais grave do que isso: passaram-se horas e horas e mais horas, e nada do corpo da garota ser levado embora daquela cena desoladora: qualquer acidente atrai a atenção mórbida dos humanos; um acidente com morte e corpo exposto é uma imagem aterradora, mas são poucos os que resistem a evitá-la. Cada olhar de curiosidade infelizmente não se traduz em solidariedade à família enlutada: muitas vezes, os parentes da vítima são obrigados a ouvir comentários que não precisariam escutar, teorias sobre como tudo ocorreu que ferem o brio daquela pessoa querida que se foi e outras dores a mais.

Faço esse preâmbulo para me ater exatamente às três últimas palavras: dores a mais. As dores a mais a que foram submetidas, nos últimos dias, centenas de famílias que tiveram de aguardar por um tempo muito maior do que o necessário para a liberação dos corpos de seus entes queridos, por causa da greve da Polícia Técnico-Científica. Sim, nesses dias de paralisação as horas angustiantes e intermináveis à espera do resgate são apenas a primeira metade do pacote de maldades: a segunda é o sinal verde do Instituto Médico-Legal (IML) para a funerária começar seus procedimentos. Com a paralisação, a unidade funciona lentamente, com número reduzido de funcionários. A demora se estende, às vezes por mais de um dia e só depois de tudo isso é que, de fato, se pode iniciar um velório.

Gabriela morreu na hora. Seu cor­po foi atirado para fora do car­ro com o impacto da batida e ali fi­cou exposto, coberto apenas por u­ma lâmina de alumínio, durante pra­ticamente toda a manhã da se­gunda-feira. Em acidente cuja cena foi presenciada por este repórter, o mesmo havia acontecido com os familiares de Joaquim Neto, que mor­reu quando seu carro foi colhido por um ônibus ao atravessar a Avenida Quitandinha, no Se­tor Jaó, próximo ao Parque Beija-Flor. O acidente ocorreu às 20h10 de um sábado, 7 de julho, e seu corpo só foi retirado do local às 6h30 de domingo. Mais de dez horas de su­plício para familiares e amigos — o rapaz, de 25 anos, era morador do setor.

Assim também ocorreu com a família de Emilly Jordana Feitosa, a menina de 1 ano que se afogou em um balde, no Setor Negrão de Lima. Foram 20 horas à espera da liberação do corpo da criança. Ou seja, em um período no qual se fariam o velório e o sepultamento, os parentes e amigos velavam... o IML. Uma dispensável vigília antes da outra, inevitável mas protelada.

Fatos que são de causar comoção e indignação e que só “estando na pele” das pessoas conhecidas para ter a real ideia do que seriam. Colocando-os à parte, fica a reflexão: é justo que uma categoria faça greve; ou, se é justo ou não, dependendo de cada contexto, pelo menos é uma mobilização garantida por lei. O que é legal nem sempre é moral, mas a greve é um direito de quem trabalha, até que ela seja considerada ilegítima. As famílias de Gabriela, Joaquim, Emilly e tantos outros não precisariam ter passado pelo que passaram, se houvesse limites mais humanos para exercer uma paralisação desse gênero.

É bem verdade que, em busca de garantir a negociação e aspirar a conquistas com o movimento, trabalhadores grevistas de todos os setores sempre tomam algumas medidas mais radicais, como fechamento de hospitais e estradas e invasões de unidades. Fazem isso porque o governo não esmorece na resistência a atender a pauta.
Mas há, certamente, muito de desumano que poderia ser evitado. Porque, se até na guerra há uma ética, qual a noção de razoabilidade que têm comandos de greve que se mostram tão desafiadores a ponto de interferir no que há de mais dolorido para um ser humano, que é o luto em família? Em que medida apelar para isso é algo lícito? Ironicamente, a frieza com que o governo reage às demandas dos grevistas se compara, nesses momentos, à de quem dirige as greves em relação aos impotentes atingidos pelo movimento. Governo e grevistas se tornam igualmente intransigentes e a corda acaba arrebentando do lado mais fraco — o cidadão que paga impostos e quer, apenas, ter o direito de usufruir a contrapartida do que invariavelmente investe no Estado.

Segurança em Goiás: “clube” com “treinador” fritado pelos “jogadores”

Objetivamente falando, as greves da Polícia Civil e da Polícia Técnico-Científica têm como mote aumentos salariais. Mas não dá para ser ingênuo e acreditar que toda a insatisfação da categoria tenha motivação exclusivamente financeira. Afinal, apesar dos pesares, os agentes civis de Goiás estão realmente entre os mais bem pagos do Brasil, assim como ocorre com os policiais militares.

Pelo contrário, assim como na população, há também muito de insatisfação com o status da segurança em Goiás, embora por razões diferentes. Enquanto os goianos em geral se assustam com a crescente violência no Estado, os policiais estão em pé de guerra com seu líder maior, o secretário de Segurança Pública, João Furtado Neto.

Mal comparando, a coisa funciona como em uma crise de time de futebol: o elenco é até competitivo, mas de repente começa a não apresentar resultados. Surgem boatos de que há corpo mole; fofocas falam em noitadas dos jogadores, que não estão nem aí mais para o que ocorre em campo; e a diretoria acaba por declarar, mais cedo ou mais tarde, que o treinador está “prestigiado”, na verdade passando recibo de que a coisa não vai nada bem.

O treinador, no caso, é João Furtado, os jogadores são os policiais e o dirigente responsável pelo clube é o governador Marconi Perillo. Os resultados da equipe são aquilo que aparece nas páginas dos jornais, mais do que as estatísticas e porcentuais que são apresentados pela comissão técnica (a assessoria do secretário).

Não espere que qualquer jogador venha a público para dizer que não vai mais jogar bola com o atual treinador: ele não declarará e, pelo contrário, até negará qualquer movimentação nesse sentido; porém, dentro de campo, em ação, fará de tudo para “derrubar” o treinador. Assim está a situação de João Furtado. Um técnico que pode até ter seu valor, mas em outro contexto, em outra situação. O time que dirige não vai jogar bola enquanto ele estiver com os pés no clube. Não importa mais que ele seja bom ou mau treinador, importa apenas o fato: João Furtado perdeu o comando de seu elenco.

O que os jogadores fazem nessas circunstâncias? Entre­gam jogo, perdem de propósito. Dessa forma, é sintomática a forma com que a Polícia Civil tem tratado certas ocorrências — em off, PMs dizem que delegados preferem soltar acusados presos em flagrante (como ocorreu com um traficante procurado e que virou notícia nacional) a ter de adotar procedimentos mais trabalhosos. Da mesma forma, o documento em que uma associação de militares recomendava a adesão a uma espécie de operação tartaruga da categoria (que não pode fazer greve) — com patrulhamento e perseguição em velocidades menores do que a padrão — mostra a indisposição da tropa.

Repercussão nacional

Além da greve entre os agentes civis e peritos, a situação ficou ainda mais grave pelos casos agudos e de grande repercussão ocorridos no último mês, como os assassinatos à luz do dia do comentarista esportivo Valério Luiz e do advogado Davi Sebba Rama­lho, aos quais a polícia ainda não respondeu com presteza mais de 30 dias depois. São crimes de repercussão nacional que já vão passando da fase da tolerância da população por uma resposta.

O secretário João Furtado poderia até ter se dado bem na pasta, mas só se tivesse tido habilidade política. Como procurador do Estado, é um “es­tranho no ninho”. E é um fato que grande parte do contingente das polícias não assimilou seu comando, simplesmente por não ser ele alguém “da lida”, “operacional”, como costumam dizer no jargão do meio. Tempo ele teve para, apesar disso, conquistar a confiança dos subordinados: está no cargo há mais de um ano e meio. Se isso não ocorreu ain­da, é provável e lógico que sua permanência não seja mais do que insistir no erro.

A bola está com Marconi Perillo, o “cartola” do clube. Ele bem que tentou preservar seu secretário, mas sabe, ele mes­mo, que a situação está insustentável. Fragilizado pela Operação Monte Carlo, cujos desdobramentos o colocaram como um dos principais alvos, e tendo de lidar também com a crise financeira dos cofres do Estado, o governador precisa demonstrar a força e o dinamismo que sempre teve de sobra para os mais diversos e delicados assuntos, mas que lhe têm fal­tado no caso da segurança pública de Goiás.

Autor: Jornalista Elder Dias

Jornal Opção ( http://www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/quando-a-greve-se-torna-mais-cruel-do-que-a-morte).