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Clamor pela memória da verdade - 09/12/2012

Um clamor está vindo da sociedade civil na busca dos Direitos Humanos e da Justiça. Esta clama seguidamente a favor de seus membros, vítimas do poder abusivo e cruel do Estado: os torturados, assassinados, desaparecidos durante a Ditadura Militar, sem omitir, os presos comuns, submetidos, hoje em dia, às mesmas práticas hediondas.

Com efeito, calcula-se que cerca de 50 mil pessoas tenham sido detidas somente nos primeiros meses da Ditadura, ao passo que em torno de 10 mil cidadãos foram exilados. O projeto “Brasil Nunca Mais”, com base nos dados de 707 processos políticos formados pela Justiça Militar entre 1964 e 1979, contou 7.367 acusados judicialmente e 10.034 atingidos na fase de inquérito. Houve quatro condenações à pena de morte, não consumadas; 130 pessoas foram banidas do país; 4.862 tiveram seus mandatos e direitos políticos cassados. (In: Brasil de Fato, número 440, citando o livro Direito à Memória da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos).

Entretanto, se formos ouvir a memória dos familiares das vítimas, os dados vão muito além dos processos que entraram formalmente no Judiciário. E por que não vem à tona oficialmente toda esta memória? É verdade que foi criada a Comissão da Verdade em plano nacional. Foi a forma como o atual Governo atendeu, de certa maneira, ao clamor da nossa sociedade que não aceita a amnésia claramente inserida no espírito da nefasta Lei da Anistia. A Comissão já é um passo dado, sem dúvida, embora nos preocupe o fato de todo o relato dos crimes cometidos pelas autoridades da Ditadura, em nome da segurança nacional, ficar só no papel. Até aí a força vigilante da política militar brasileira consente. Diante, porém, da proposta de punição, reagem com o tabu do revanchismo. A tal ponto que a própria Presidente Dilma Rousseff, ao se referir à Comissão da Verdade, chegou a proclamar: “Nada de revanchismos.” Ou seja, trata-se de uma demonstração do temor reverencial à farda. Na realidade, como escreveu Frei Betto no dia 24 de maio deste ano, no mesmo Brasil de Fato: “O Brasil é o único país da América Latina que se recusa a punir aqueles que cometeram crimes em nome do Estado, entre 1964 e 1985”.

Mas, com o passar do tempo, as brechas começam a aparecer. Com efeito, aconteceu uma decisão inédita da Justiça de São Paulo, abrindo um precedente para a jurisdição brasileira em processos que envolvem pessoas vitimadas pela Ditadura Militar. No dia 17 de março, o Juiz Guilherme Madeira Dezem determinou a retificação do atestado de óbito de João Batista Franco Drumond, militante do PC do B, no seguintes termos: Onde se lê no documento “Avenida 9 julho” passa a constar “dependências do DOI-CODI II Exército, em São Paulo”. No campo “causa da morte” a expressão “traumatismo craniano encefálico” será substituída por “decorrente de tortura física”. Para o ex-ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República Nilmário Miranda, a decisão deste Juiz “abriu uma porta para julgamentos semelhantes em outros casos”. E continua: “De fato é uma decisão histórica nessa linha de Direito à Memória e à Verdade” (Cf. Aline Scarso, in Brasil de Fato, número 478, página 9).

Ao tratarmos do clamor pela Memória da Verdade, não podemos nos ater somente ao passado negativo, esquecido em alguma sepultura propositalmente desconhecida. A Memória, na visão bíblica, tem de especial que, além da dimensão retro, ela se projeta também para o futuro, para a utopia. Neste final de ano, celebramos o Advento, o mais rico de todos os tempos litúrgicos. O Profeta que melhor o interpretou foi Isaías, que assim cantou poeticamente:

“Orvalhai céus das alturas,

As nuvens chovam a Vitória.

Abra-se a terra, brote a Salvação,

E germine a Justiça”.(45,8).

Segundo a pregação de Jesus, é dos pobres, dos fracos e dos oprimidos que vem a concretização de dias melhores, do bem viver, numa sociedade onde reina a Justiça, enquanto os donos do poder dominador só cuidam de reprimir todo impulso libertador da Memória das heróicas vítimas de ontem e de hoje. São elas que anunciam profeticamente a Esperança no País que nós todos queremos, o Brasil dos nossos sonhos.

 

Autor: D. Tomás Balduino é bispo emérito da Diocese de Goiás e Conselheiro Permanente da Comissão Pastoral da Terra