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PRERROGATIVA DE FORO NAS AÇÕES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - 18/06/2007

"Pressupõe-se que o administrador público deva ser probo (íntegro, honesto), mas muitos não têm merecido esse adjetivo"

* Nino Oliveira Toldo

"Não há sentido algum, tampouco interessa à sociedade, que se submetam à competência originária dos tribunais as ações de improbidade administrativa. Esse tipo de proposição somente interessa a quem deseja a manutenção do triste cenário de impunidade daqueles que, costumeiramente, lesam os cofres públicos."
 
A sociedade brasileira vê, com perplexidade, os escândalos que surgem quase que semanalmente, envolvendo altas autoridades da República, nas suas três esferas de Poder: Executivo, Legislativo e Judiciário. Acostuma-se com os vários e estranhos nomes das operações da Polícia Federal: Anaconda, Hurricane, Thêmis, Navalha, dentre outros. Assusta-se, porém, com a torpeza dos fatos atribuídos a muitos políticos, advogados, policiais e membros do Ministério Público e do Poder Judiciário.

A sociedade clama por Justiça, ao mesmo tempo que reclama, com razão, da impunidade que envolve pessoas ocupantes de cargos e funções públicos tão importantes. “Cadeia só para os pobres” e “tudo vai acabar em pizza” são pensamentos recorrentes no senso comum.

Uma questão, no entanto, que muito contribui para a sensação de impunidade reinante no Brasil, tem passado quase despercebida por muitos que clamam por Justiça e pelo fim da impunidade: a prerrogativa de foro, mais conhecida como “foro privilegiado”.

Essa prerrogativa está prevista na Constituição Federal em diversos artigos. Assim, ao Supremo Tribunal Federal compete julgar, nos crimes comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros, o Procurador-Geral da República, os Ministros de Estado e os Comandantes das três Forças Armadas, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente. Isso está expresso no art. 102, I, “b” e “c” da Carta.

Ao Superior Tribunal de Justiça cabe, nos termos do art. 105, I, “a”, da Constituição Federal, processar e julgar, originariamente, nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante os tribunais.

Aos Tribunais Regionais Federais compete, conforme dispõe o art. 108, I, “a”, da Constituição Federal, processar e julgar, originariamente, nos crimes comuns, os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.

A Constituição Federal (art. 125) atribui aos Estados a organização de sua Justiça e estabelece que a Constituição do Estado definirá a competência de seus tribunais (art. 125, 1º). No Estado de São Paulo, a competência do Tribunal de Justiça está definida no art. 74 da Constituição Estadual, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, nas infrações penais comuns, o Vice-Governador, os Secretários de Estado, os Deputados Estaduais, o Procurador-Geral de Justiça, o Procurador-Geral do Estado, o Defensor Público Geral, os Prefeitos Municipais, os juízes do Tribunal de Justiça Militar, os juízes de Direito e os juízes de Direito do juízo militar, os membros do Ministério Público, o Delegado Geral da Polícia Civil e o Comandante-Geral da Polícia Militar.

Como se vê, são muitas as autoridades detentoras de prerrogativa de foro. Além disso, essas pessoas têm o poder de atrair para o seu foro os demais réus que porventura existam nos processos. É por essa razão, por exemplo, que no processo dos chamados “mensaleiros” há quarenta acusados perante o Supremo Tribunal Federal, quando, dentre eles, poucos teriam essa prerrogativa.

E por que isso leva à impunidade? Por uma razão simples. Os tribunais, por sua própria natureza, não têm condições de proceder à instrução desses feitos, o que prolonga sobremaneira os processos, levando, muitas vezes, a outro grave problema de nosso sistema penal e processual penal: a prescrição da pretensão punitiva.

Muitos dos crimes de que são acusadas pessoas com prerrogativa de foro têm penas relativamente pequenas e, por isso, prescrevem em tempo não muito longo. Como os tribunais têm que julgar inúmeros recursos e habeas corpus – funções para as quais são naturalmente preparados –, dividem seu tempo com os processos penais de sua competência originária, tendo que proceder à instrução, ou seja, interrogar os réus e ouvir as testemunhas. O fato de que tais atos eventualmente sejam delegados a juízes de primeiro grau não minimiza o problema.
Além disso, o procedimento criminal nos tribunais é anacrônico. Conforme o regimento interno, um recebimento de denúncia, ato relativamente simples, é julgado por muitos membros (4, 11, 18, 25), o que leva muito tempo para concluir-se. Por isso é que o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, relator do caso dos chamados “mensaleiros”, afirmou, publicamente, que o recebimento da denúncia, nesse caso, poderia levar até um ano e, com razão, disse que a prerrogativa de foro seria a “racionalização da impunidade”.

Os tribunais têm o escopo precípuo de julgar recursos e, originariamente, habeas corpus e mandados de segurança. Não deveriam processar e julgar, originariamente, ações penais. Isso nada tem a ver com a estrutura ou com os membros dos tribunais, dentre estes inúmeras pessoas de notável saber jurídico. Tem a ver com o tempo necessário para a instrução e preparo do julgamento, que tem que ser dividido, como disse, com o julgamento dos inúmeros recursos que abarrotam os tribunais em todo o País.

Como se isso já não fosse um grave problema, no bojo da Reforma do Poder Judiciário em tramitação na Câmara dos Deputados (Projeto de Emenda Constitucional – PEC nº 358, de 2005), oriunda do Senado Federal, e prestes a ser posta em pauta, inseriu-se a proposta de acréscimo do art. 97-A à Constituição Federal, com o seguinte teor:

“Art. 97-A. A competência especial por prerrogativa de função, em relação a atos praticados no exercício da função pública ou a pretexto de exercê-la, subsiste ainda que o inquérito ou a ação judicial venham a ser iniciados após a cessação do exercício da função.

Parágrafo único. A ação de improbidade de que trata o art. 37, 4º referente a crime de responsabilidade dos agentes políticos, será proposta, se for o caso, perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de função, observada o disposto no caput deste artigo.”

Esse dispositivo, inserido em um artigo (97) que nada tem a ver com prerrogativa de função, tem por objetivo, única e exclusivamente, ampliar o foro privilegiado também para as ações de improbidade administrativa, instrumento da mais alta importância para o controle da Administração Pública.

Pressupõe-se que o administrador público deva ser probo (íntegro, honesto), mas muitos não têm merecido esse adjetivo. Daí que o Ministério Público, em todo o País, tem acionado prefeitos, governadores e ministros, dentre outras autoridades, perante juízes de primeiro grau, havendo relativa rapidez no processamento dos feitos. Milhares de ações já estão em curso.

O que sorrateiramente pretende-se com a inserção desse dispositivo é que a competência para processar e julgar essas ações seja deslocada dos milhares de juízos no Brasil todo para os diversos tribunais do País (Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal), conforme a autoridade envolvida. Com isso, as ações terão tramitação muito mais lenta, empurrando-se para as calendas (ou, popularmente, o dia de São Nunca) a solução dessas lides. Será a institucionalização da impunidade por improbidade administrativa, lamentavelmente.

Por isso, a Associação dos Juízes Federais do Brasil – Ajufe, na defesa das instituições democráticas e na busca de melhores formas de distribuição e efetivação da Justiça, vem a público conclamar os diversos segmentos da sociedade civil organizada e as inúmeras autoridades envolvidas e comprometidas com o Estado Democrático de Direito, a que se posicionem contra essa proposição, contida na PEC nº 358/2005. Não há sentido algum, tampouco interessa à sociedade, que se submetam à competência originária dos tribunais as ações de improbidade administrativa. Esse tipo de proposição somente interessa a quem deseja a manutenção do triste cenário de impunidade daqueles que, costumeiramente, lesam os cofres públicos.

*Nino Oliveira Toldo é juiz Federal, titular da 10ª Vara Federal Criminal de São Paulo. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Vice-Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil. Fonte: sítio expressodanoticia.com.br