Risco do populismo e da casa dividida - 20/01/2008
Jornal Opção - Editorial - De: 20 a 26 de janeiro de 2008
Numa casa, na criação dos filhos, costuma haver o sim e o não. Habitualmente, pela tradição familiar tropiniquim, o não é o pai, o face amarga. A mãe, pela mesma tradição, é, em geral, o sim, a doçura. Ao final dos conflitos, com a casa dividida, ninguém se entende. O resultado é que a casa, metaforicamente ou não, costuma ruir. A mesma imagem pode ser usada para entender o governo de Alcides Rodrigues. Em decorrência de uma série de problemas, como um déficit financeiro mensal persistente — que chegou a 100 milhões de reais, em determinado momento —, a gestão do governante do PP não deslancha e não empolga a sociedade, embora todos reconheçam as boas intenções de Alcides. A tese de que viceja o marasmo é hegemônica nos segmentos organizados da sociedade goiana.
Ao mesmo tempo, uma das maiores dificuldades do governo Alcides é a falta de comunicação, tanto externa quanto internamente. A impressão que se tem, cada vez mais, é que os secretários não têm interlocutores no governo e não se entendem entre si. Políticos experimentados, pelo menos dois passaram pelo governo, asseguram que o mediador ou coordenador deve ser o próprio governador, e não um de seus secretários. Porque este secretário, se ficar com a fama de que só diz não, passará a ser odiado pelos secretários e se tornará, rapidamente, o bode expiatório de todos. O governador, se ficar com a fama de que sempre diz sim, acabará por perder auxiliares corajosos, como Jorcelino Braga, secretário da Fazenda, que, em nome do interesse público, não teme dizer não com freqüência. É salutar que sim e não sejam ditos, conjuntamente e às claras, por Alcides e Braga. Para não queimar Braga, pois, como se sabe, o governador raramente se queima.
Quando se trata da administração pública, corre-se o risco, sem demora, de ceder ao populismo. É mais fácil agradar do que ter coragem para desagradar. Braga é duro, talvez até exceda em suas posições em defesa da contenção de gastos e em sua política centralizadora, mas Alcides tem, neste secretário, um auxiliar que não cede às pressões políticas e empresariais. Não cede ao populismo, ao aplauso gratuito e, quase sempre, interesseiro. Criticado intensamente, pelo menos nos bastidores, por conta de sua fama de centralizador, Braga é, seguramente, incompreendido. Não por que seja um enigma, e sim por que sua função no governo representa a figura mais sólida e antipática do não. É certo que seu não tem pouca suavidade, como eventualmente o dos pais. Mas é um não que tem a ver, sobretudo, com a necessidade de recuperar a economia do Estado, de pô-la nos eixos. Sem cortes de despesas, medidas dolorosas mesmo, o Estado não tem como recuperar seu poder de investimento. Daí a inflexibilidade de Braga, o técnico que, ao contrário do que muitos pensam, tem sensibilidade política, tanto que foi um dos articuladores do marketing eleitoral de Alcides, em 2006. A questão central é que o secretário da Fazenda sabe que, no momento, concessões, excessivas ou não, acabarão por demolir e retardar o programa de contenção de gastos. Alguns políticos da chamada "base aliada", do Tempo Novo, parecem não entender que, quanto mais são adiadas as medidas de impacto, mais desgaste político advirá. Neste momento, pois, cabe a Alcides, e não apenas a Braga, decidir e assumir posições mais objetivas. O governante deve, sim, satisfação à sociedade; não se trata de satisfação à imprensa, como se costuma avaliar. Um governante pode até errar, mas não deve se omitir.
Na semana passada, o secretário da Saúde, Cairo de Freitas, convocou repórteres dos jornais, rádios e emissoras de televisão para uma entrevista coletiva. Os jornalistas ficaram surpresos ao ver Cairo com uma faixa preta no braço direito. Quatro deles disseram ao Jornal Opção que imaginaram que Cairo estava se solidarizando com as famílias dos que morreram devido à febre amarela. Não era nada disso. Depois de chegar de uma viagem de férias, gozadas no período mais difícil da crise da doença, Cairo não demonstrou, pelo menos não publicamente, preocupação com os mortos e com os doentes.
A tarja preta tinha a ver exclusivamente com o fato de, por decreto, a Secretaria da Fazenda ter incorporado a Escola de Saúde Pública Cândido Santiago (Esap). Naquele momento, Cairo apresentava-se como solidário às organizações do setor de saúde que condenaram, com veemência, a decisão da Sefaz. Trata-se de um "equívoco", frisou o secretário da Saúde, recebendo o aplauso do setor. Dentro do governo, ganhou mais aplausos, por ter enfrentado o "poderoso" Braga. "Cairo disse, publicamente, o que muitos secretários afirmam privadamente", exultou um secretário que se considera menosprezado.
Por que Cairo levou um problema interno para as luzes externas da mídia? Primeiro, o secretário da Saúde quis mostrar que tem cacife e provar que é um dos protegidos do governador e, assim, não teme o confronto com Braga. "Braga não vai enquadrar Cairo. Este não é o secretário da Indústria e Comércio, Ridoval Chiareloto, que está devidamente enquadrado", ouviram diversos jornalistas de auxiliares do secretário da Saúde.
Segundo, o protesto de Cairo teria menos a ver com a incorporação da Escola de Saúde Pública — alguns médicos avaliam que o governo do Estado teria mais proveito se apoiasse o Instituto de Patologia Tropical (IPT), da Universidade Federal de Goiás — e muito mais a ver com sua proposta de criar uma fundação.
O governo goiano deve criar, afirma Cairo, uma fundação de saúde. Numa entrevista ao jornal O Popular, Cairo explicita: "É uma fundação que segue os moldes que o Ministério da Saúde propôs para gerir os hospitais do Rio de Janeiro e que já foram aprovados na Bahia e em Sergipe. É uma fundação estatal de direito privado. Tem o controle do Estado, mas tem a flexibilidade do privado. A contratação é pela CLT. Posso contratar e demitir. Tenho de comprar com licitação pública, mas ela é mais flexível. Não há orçamento".
Parece uma idéia "maravilhosa". Mas cinco médicos consultados pelo Jornal Opção garantem que, num governo anterior, Cairo criou uma fundação, mas não funcionou a contento. Dos cinco apenas o ex-secretário da Saúde Clodoveu Azevedo, um médico com décadas de experiência, decidiu conversar em on (explicitando o nome). "As fundações são escolas de corrupção e são mais úteis àqueles que, no lugar de realmente defender a saúde pública, se tornam servidores indiretos de laboratórios de medicamentos e de grandes esquemas empresariais."
Clodoveu Azevedo, que diz nada ter de pessoal contra Cairo, critica: "O secretário deveria explicar a liquidação ou não da fundação que ele criou num governo anterior. Sua principal preocupação, no momento, deveria ser a criação de um projeto para combater a febre amarela. Pode anotar e me cobrar depois: a febre amarela vai voltar em 2009". O médico acrescenta: "Não conheço a posição do secretário Braga, mas ele deveria trabalhar contra a criação da fundação, sem temer pressões".
Não se enganem os políticos, pois, centralizador ou duro, Braga é uma das esperanças de que o governo, com as contas em dia, retomará os investimentos e, portanto, poderá dar certo. Se ceder ao populismo, aos interesses táticos, o Tempo Novo será enterrado entre 2008 e 2010. O que devastará o Tempo Novo não serão medidas duras, que podem gerar desgaste eleitoral momentaneamente, e sim um possível fracasso do governo Alcides.
De qualquer modo, o protesto de Cairo deve ser útil para Braga entender que precisa se articular politicamente. A reação do secretário de Saúde é tão-somente a ponta do iceberg de uma insatisfação muito mais forte e difusa — tanto no governo quanto em setores da sociedade, como a mídia. Receber toda a carga negativa do governo Alcides não é saudável para o secretário da Fazenda. Nem para o Estado.