Causos, contos e prosas

O TRONCO DOIS

 

Senhor Delegado.

 

A chuvinha mansa, fria e fina da madrugada caía sem cessar, tamborilando docemente miríades de pingos no telhado.  Como que fosse a meiga voz de um’a mãezinha cantarolando docemente linda canção de ninar nos ouvidos do Tatão, enrolado nos cobertores.  Mais ainda porque, àquela hora – como já se disse, três ou pouco mais da madrugada - ele acabara de chegar, oriundo do BOTECO DO BEBÊ. Leve... bambo... com os pés pisando as nuvens.

 

 E agora, recolhido no cálido aconchego de seu colchão,  haveria de passar todo o restinho da madrugada sonhando mui lindos sonhos... não fosse o fedaputa de um buraquinho no telhado, bem por cima da cama dele. E pelo dito orifício, depois de certo tempo, começou a imiscuir-se em gotas intermitentes o frio visco de tantas águas, picotando-lhe as bundas.

 

Para fugir delas, arrastou-se mais para as beiradas da cama. Sempre na esperança de que a chuvinha não fosse muito longe. Mas foi.

 

-         Póc!...

-         Póc!...

-         Póc!...

-         Póc!...

-         Póc!...

-         Póc!...

 

Não bastasse essa merda gelada, vinha ainda, lá de cima do guarda-roupa, o estrondo igualmente intermitente, e assaz irritante, do patacão-despertador:

-         Tic!...

-         Tác!...

-         Tic!...

-         Tác!...

-         Tic!...

-         Tác!... que nas noites de sábado e vésperas de feriado, ele

sempre desengatava. Claro! Se amanhã é domingo, pra quê levantar cedo, gente...? Mas hoje, o besta, do relógio, se esquecera.

 

         E agora também, juntou-se esse chato, em dupla com essa goteirinha enjoada...

 

-         Tic!...  Póc!...

-         Tác!... Póc!...

-         Tic!...  Póc!...

-         Tác!... Póc!...

-         Tic!...  Póc!...

-         Tác!... Póc!...

-         Tic!... Póc!...

 

Pôs-se então Tatão a pensar com seus botões: mudo a cama de lugar ou conserto essa fedaputa...?

                                                        A cama...?

                                               A fedaputa...?

                                                                                                      

                                               Decidiu-se enfim pela fedaputa. Da goteira! O senhor acredita...? E valentemente, de um só golpe empertigou-se no meio do quarto. A cabeça bamboleou, o mundo rodou e ele quaaaaase... - não.

                    Não desistiu.

                   Foi lá de fora, pegou uma escada, subiu e... caiu.

Desditosamente bem em cima de um tronco cheio de farpas. Restos mortais de um velho salgueiro. Agora cheio de pungentes lanças ameaçadoras, apontadas contra os céus. Uma delas lhe fez no flanco direito um feio e fundo furo.  E o diabo do tronco, não satisfeito, furou-lhe também os costados. Conquanto menos fundo e feio tenha sido feito ali esse outro furo. A mão esquerda também ficou bem machucada.

 

         Data Venia, Autoridade, no instante em que, ao lado da maca em que gemia o Tatão, nos longos corredores deste hospital, fazia este vosso teimoso escrivão, as devidas anotações para a lavra deste boletim de ocorrência é que ele estranhou que a roupa de tal Tatão, não estava molhada de chuva não! Então...?  Uái...?  bem... com certeza há de ter-se trocado antes de aqui vir, neste Templo da Saúde, das mãos dos denodados sacerdotes de Esculápio, buscar para suas chagas, devidas costuras, que lhe estancassem cachoeira de tanto sangue...

 

E já estava esse vosso escriba a ponto de encerrar esse boletim de ocorrência quando o telefone tocou. Era o Agente de Polícia Antônio Silva, do Plantão do Vinte. Perguntou-me ele, a mando do seu bravo chefe, a respeito do estado de saúde do Tatão. É que, de acordo com a gravidade dos ferimentos seriam lavrados os devidos, competentes e respectivos procedimentos policiais contra o tronco do Tatão.

 

                            Sim, senhor Delegado!

                            A força dos ferros da lei,

para a dura e inexpugnável masmorra

daquela distrital, já havia levado

e feito prisioneiro,

o velho salgueiro.

Chama-se ele, Pedro Pereira Pinto.     

 

 

ADENDO

Senhor Delegado, o senhor estava acreditando na história do Tatão...? Eu também não.

 

                                                                                          Chiquim

                                                                                O ESCRIVÃO