Causos, contos e prosas

A FEITICEIRA

   -         Oh, meu Deus!? O quê que eu fiz de ruim nesse mundo pr’aquela muié do diabo, gente?!

 

Senhor Delegado.

Esse vosso mui cioso escrivão de seu cargo ouviu tão desesperado apelo saído - diga-se a bem da verdade - muito mais dos olhos que dos lábios do pobre Bino. Que na verdade se chama Albino. Fiquei sabendo depois.

 

Era tão lancinante o seu olhar, coitado... que por muito pouco este vosso duro e muuui frio escrivão de seu cargo não se derreteu, ele também, em dorido pranto.

 

-         Que Deus...? Que muié...? Que diabo, gente?!

 

‘Bino ‘baixou a cabeça. Calado. Depois de um tempo levantou os olhos, olhou de relance para os longínquos extremos dos corredores desta casa de saúde, como que investigando a possibilidade de ver por ali, n’alguma reentrância escondida, a tal mulher. Não a encontrando, espichou o pescoço, enfiou a boca nos meus ouvidos, e em tom assaz misterioso, no meio de muitos ais, cochichou sibilando:

 

-         “A feiticeira ai...”

-         “Credo em cruz, ‘Bino! Te esconjuro, trem!”

 

E ele continuou:

 

- “É verdade, Dotô... ai ai!... Onde ela vai ai... ela joga mau-olhado 

ai...  Ela passa perto da gente ai...  dá um muxoxo, olha com raiva ai... olha  p’routro lado e ‘gospe’ no chão ai...

 

                                                        E muxoxo...?

                                                        Será com x ou ch...?

 

         Bino me contou ainda, senhor Delegado, que até a cabeça dói quando ele passa perto dela. E não só a cabeça, mas até uma dor nas escadeiras pega ele de jeito*. Ele jura que é mau-olhado da cuja feiticeira, Autoridade! O senhor acredita...?

 

- Vou contar uma coisa pro senhor ai: uma vez, eu tinha um carrinho de algodão doce ai.  E sabe o que ela fez... ai...?

 

Sabe o que ela fez, Senhor Delegado? Eu é que vou te contar. Do mesmo jeitinho que me contou o pobre ‘Bino. Só mudando um pouquinho as palavras... E foi assim:

                                                                                                      

... de primeiro, logo no início do negócio, pedalando a rodeira daquela máquina misteriosa, o açúcar virava aquele floco em fiapos  transformando-se na coisa mais lindo de se ver com os nossos primeiros olhinhos de criança. Era como um sonho de mágica. Então, de repente...  sem mais nem quê, sem explicação nenhuma o trem enguiçou. A roda rodava do mesmo jeito, mas o que saía para as beiradas do taxo não era mais aqueles tênues fios de seda virando branca nuvem, como um sonho mas... um trem gosmento, feio e... nojento. Credo...

 

-         Parecendo bosta de pato.

 

Ipsis litteris, foi assim mesmo que o ‘Bino ‘cabou de me

descrever a triste e amaríssima sina do seu carrinho de algodão-doce, senhor Delegado. 

 

-         Feitiço! Mau-olhado! Mandinga! Trabaio!

 

E disse-me êle, Autoridade, que até o véi dela... – quer dizer... o velho dela, com certeza seu marido, há de ser uma cria do diabo. Ele mesmo, o velho da feiticeira, vive dizendo a quem quiser escutar, que ele próprio saiu de um ovo gerado pelo capeta. Credo...

 

-         E tudo isso, Dotô ai... deixa a gente morrendo de medo

uai ai...

 

E arregalando mais os olhos, enfatizou, sublinhou e

marcou cada sílaba do que aqui, assim me contou:

 

-         “Seu Delegado ai... o Madre Germana inteirim caga de

medo daqueles dois ai...”

 

Data Venia, Autoridade, meto aqui entre aspas o que me disse o ‘Bino para o senhor não achar que eu é que estou escrevendo palavra feia nesse papel de repartição pública, viu...?

 

E então, até aqui deixei que ele se desabafasse. Precisava, coitado...  Mas a esse ponto de seus lamentos, com a devida vênia, pedi que me contasse quem tinha sido o autor da facada no seu braço esquerdo. E na sua nádega. Também da esquerda.

 

-         A feiticeira, dotô ai... 

 

Ora pois, Senhor Delegado, não me lembro de ter visto nas

antigas historinhas de ANDERSEN, nem nos CONTOS E LENDAS DOS IRMÃOS GRIMM, feiticeira usando faca. Lembrei isso a ele. Assim:

 

-         ‘Bino, feiticeira usa é maçã, caldeirão, vassoura...

 

         Mas ele encerrou o papo em termos tais e quais, no meio de muitos mais ais, exibindo-me o braço e a bunda: 

 

-         Hoje é faca.

 

 

ADENDO

 

Senhor Delegado.

 

Data Venia, o que aqui neste boletim vai escrito é precisamente – ou quase... -  o que a este vosso escrivão disse o Bino.  Disse-me também que o nome do velho, o marido da feiticeira, e o da própria, é: DITÃO e TIANA. Respectivamente... acha. São vizinhos dele. E os homens que o feriram daquele jeito ali chegaram arrombando a porta de sua residência e dizendo ser policiais dando buscas. Não lhes conhece o nome. Não se lembra de tê-los visto pelo Madre Germana...

 

- Outra coisa, Senhor Delegado: Muxoxo é com x mesmo. Vi no Aurélio.

 

        Chiquim

                                                                          O ESCRIVÃO

 

Autor: Francisco de Oliveira Santos - Chiquim
Fonte: www.ugopoci.com.br
Data da publicação: 26.10.2007