Causos, contos e prosas

FANTASMA DE AMBULÂNCIA

 

O Antonio Carlos, da Casa Modelo em Campinas, foi motorista de ambulância numa quadra da vida de vacas magras. Isto foi há mais de vinte anos e naquela ocasião ele tinha medo de defunto, muito mais do que de polícia.

Era um rapaz novo, querendo impressionar as moças casadoiras de seu bairro e não podia demonstrar esta franqueza senão não arrumava casamento. Ainda mais naqueles dias quando estava de farol alto para uma vizinha, a Raquel. Ela dava-lhe moral.

Estava de plantão numa sexta-feira e o chefe o mandou levar um doente de Paraúna para o Hugo em Goiânia. Quando recebeu a paciente não tinha ninguém no hospital para acompanhar. Era algo complicado. E se a tal morresse no caminho, como ia fazer com a defunta?

Era uma senhora duns setenta anos, a conhecia de vista. Quando estava sadia era bezendeira e diziam dela fazer umas sessões de macumbaria. Recebia e tirava espritos. Em razão do oficio da moribunda até andar com ela viva, durante a noite em rodovias cheias de cruzamentos, coisa perigosa. E se os mortos com os quais ela vivia mexendo viessem visitá-la?

Saiu pela cidade à procura d’algum amigo, conhecido, qualquer um para acompanhá-lo. Não encontrou ninguém em razão do adiantando da hora. Não podia acordar algum conhecido e falar que estava com medo. Era perigoso o assunto se espalhar acabando com sua reputação junto às mocinhas casadoiras. Que desastre! Sozinho não sairia da cidade nem que a vaca tossisse.

Nisto viu um bêbado conhecido cercando frango, pela rua. Parou a ambulância e o chamou para ir com ele ali. Bêbado topa tudo e entrou, era muito melhor que ficar andando a pé naquela rua que só ficava rodando sem parar e não chegava nunca em sua casa. Tinha até parado esperando a casa passar rodando em sua frente, mas não chegava.

Antônio, agora acompanhado enfiou a cara no mundo pisando fundo para chegar de pressa. Assim não corria risco da bruxa morrer e assombrá-lo mais ainda. O bêbado dormia e acordava mais enjoado do que nunca, mas pelo menos era uma companhia contra assombração.

Chegou ao hospital e foi fazer os trâmites na internação da velha. Demorou mais de hora. O caronista o procurou e nada de encontrá-lo. O fogo tinha passado para a fase de sono. Entrou na ambulância deitando-se na maca e dormiu profundamente.

Antonio terminou a internação da mulher e veio apressado para ir embora. Procurou o bêbado, seu segurança contra assombração e nada. Nisto um policial do plantão do Hugo veio avisá-lo: a paciente tinha morrido. Seria encaminhada para o necrotério e somente poderia ser removida por veículo funerário. Ainda melhor pra ele. Nem com acompanhante tinha coragem de encarar a rodovia com uma defunta daquela qualidade. Ainda mais de noite e sozinho.

Não encontrando o bêbado trazido para companhia resolveu ir embora. Tomou uma dose boa de conhaque e multiplicou sua coragem. Deu pouca coisa acima de zero! No caminho encontraria algum carro indo na mesma direção e o acompanharia. Era mais seguro. No dia seguinte tinha de vir ao Hugo e aí acharia o bêbado para levar de volta. Devia estar invernado nalgum boteco.

A rodovia estava um deserto danado. Na altura do povoado de Pindurasaia tinha um cemitério na beira da rodovia. Passaria naquele ponto na velocidade que a ambulância desse. Assombração por mais braba que fosse não daria conta de alcançá-lo.

O bêbado acordou e sentiu o zunir do vento nas janelas laterais da ambulância. Não havia nenhuma janela de comunicação com o motorista, ou se tinha ele não achava. Queria fumar e precisa pedir um pito p’ro motorista, enfiou a mão pela janela e bateu no braço dele pedindo fogo e cigarro.

Aquilo foi a gota d´água na imaginação de Antônio apertado nos seus devaneios assombrados. Ao olhar de lado e ver aquela mãozona preta batendo em seu ombro entrou em parafuso alucinógeno. A assombração do cemitério do Pindurasaia era muito mais veloz do que a ambulância correndo a mais de cento e oitenta por hora.

Não teve salvação, puxou o volante de lado e o carro perdeu o prumo, o rumo, o eixo, tudo, indo na direção dum despenhadeiro. Capotou umas dez vezes. O bêbado arrumou uma balburdia de fazer inveja em torcida de futebol em lances arrojados. Aquilo para Antônio era todos os defuntos do cemitério querendo invadir a ambulância. Estava ferrado.

Naquele desajuste do capotamento foi parar dentro da parte de trás da ambulância. Os dois se abraçaram e assim foram encontrados pela polícia rodoviária três horas depois. Quando acordaram Antonio não aceitava o bêbado seu conhecido junto com ele. Havia deixado o safado no pátio do Hugo. Aquilo era uma assombração de carne e osso. Coisa complicada.

O policial Rodoviário pensou que o motorista estivesse alcoolizado e o levou para a delegacia de polícia. Ele estava num cheiro de pinga sem tamanho. Os abraços com o bêbado na capotagem e depois o repouso grudado nele o impregnaram com bafo de onça.

Na DP ficou provado não ter ingerido uma gota de álcool, mas para se explicar porque capotou o carro novo, sem defeitos, em linha reta, teve de explicar a velocidade desenvolvida e o susto com o bêbado. Para se livrar do processo admitiu seu medo de assombração. Perdeu o emprego.

Mas foi até melhor, veio para Goiânia, aqui começou a trabalhar com comércio de móveis usados e se deu bem. Ainda tem muito medo de defunto e já começa a se preocupar com sua esposa. Tem dias dela arrumar uma ronqueira esquisita. Se morrer é até capaz de desertar de casa.

É a vida, sô!

Gyn, 01SET07

Delegado Euripedes da Silva III