Causos, contos e prosas

A BOLA E A FERA

Senhor Delegado.

 

A bola do menino do Zebastião...

 

                                      Não, Senhor Delegado!

                                      Não queira me corrigir.

                                      Também eu quis fazer o mesmo,

quando me disse dona Vininha,

o nome do seu desafeto.

Asseverou-me ela, de pés juntos,

que: Zebastião, e não Sebastião,

era o nome do home'.

Assim, sendo, concesa venia,

recomecemos, e sigamos em frente.

 

         Pois é: A bola do menino do Zebastião, em conseqüência de um chute, nela muito bem aplicado, pulou o muro. E desafortunadamente foi cair bem dentro dos dentes da Pantera. Que por acaso, estavam também, bem dentro do quintal da Vininha.

 

A bola foi, desgraçadamente, transformada em tiras pelos caninos daquela fera que, eu vi: não devia medir mais que meio quilo,

                                      um palmo e meio de comprimento

                                      e alguns centímetros de altura.

                                      E naquele caráter - em tiras – devolvida.

Ao quintal e ao menino.

                            Do Zebastião.

                                        Que não gostou.

 

                                      De tanta raiva ele pegou um tijolo e jogou pra cima.

 

Nãããão!!   

O Zebastião não fez isto aleatoriamente.

A esmo.

Cuidou antes, de aplicar engenhosamente ao impulso propulsor,

uma leve inclinação para que...

 

    na

            sua

                viagem

                           de

                             volta

                                    à

                                      face

                                            da

                                                Terra,

                                .                         aquele petardo passasse antes

                                                                pelo telhado da Vininha e...

                                                                                             

SPRAFT!

Passou.

 

- Seu Delegado, pareceu até que fosse um caminhão caindo em cima de mim. Credo!

 

Falando assim, diante deste vosso escriba, Dona Vininha, com os olhos esbugalhadíssimamente exorbitados, ainda procurava na cabeça, no meio dos cabelos, restinhos de tijolo,

        telha

        e sangue.

 

-         E a diaba da Pantera nem é minha, Dotô! É do Ambrózio!

 

Senhor Delegado, eu sei: manda a praxe de uma repartição pública como esta

que só apareçam nos respectivos registros tão somente os nomes das pessoas que estejam diretamente envolvidas na ocorrência. Ou que possam, d'alguma forma, com o devido inquérito, corroborar. Assim sendo, em obediência a tal preceito, quis saber este escrivão:

 

-         E quem é o Ambrózio, Dona Vininha?

-         É um inquilino meu que operou do saco.

 

É. Foi assim mesmo, em termos tais e quais, que se esgoelou Dona Vininha.

Bem dentro da 1ª Delegacia Distrital de Goiânia. Assim de gente. E ainda, sem cerimônia alguma entendeu de enriquecer aquela sumária informação com gestos tão expressivos que dispensariam quaisquer palavras. Assim: arredou para o leste cardeal a perna direita, fez hirta a sua mão espalmada com os dedos colados entre si e, imitando assim um cutelo em ação, decepou  ela também ali, no meio de suas próprias virilhas o que de costume se instala, por obra e graça do Supremo Criador, entre as pernas de suas machas criaturas.

 

Ora! Aquela mesma praxe manda igualmente que sejam vazados nos mesmos

registros,  tanto quanto possível, ipsis litteris, o que declara o cidadão. Nem por isso deixou este escriba, guarda cioso e intransigente defensor da Última Flor do Lácio de, pelo menos tentar, fazer voltar aquela distinta senhora, a seus cabais, em termos tais e quais:

 

- Minha Senhora, queira por gentileza, em respeito a esse ambiente e em nome da

boa compostura, conter e equilibrar um pouco mais o teor de sua verve, porquanto...

 

A princípio, os olhos  exorbitados da Dona Vininha fariam crer, a quaisquer outros que a tais fatos testemunhassem, que ela estivesse mais assustada com o glossário de erudição deste escrivão, do que com a tijolada do Zebastião.

Engano.

Que se pode constatar com mais algumas outras palavras,

contabilizando um mui longo tempo em que o casal haveria de amargar total abstinência...

 

- Um ano, Doutor! Um ano, sem...  oh...

 

Oh, meu Deus... Senhor Delegado, quer saber o que fez o escrivão de seu cargo...? Quer...?  Nada.

     Ele fez, nada. Nada mais que ficar boquiaberto feito besta olhando para a cara da

Senhora Maria Divina Pedreira e Silva. Ela também não.

                                                     Da mesma forma ficou ela só olhando os olhos aparvalhados do escriba. Por uma eternidade que durou pelo menos uns vinte segundos. Depois disse a cuja, com os olhos bem vazios, murchos como um jenipapo maduro e com um tom matizado de tão extrema compaixão que, estivessem os olhos de Vossa Senhoria aqui presente, não obstante a dureza e a frieza que de vós exige tal ofício, verteriam lágrimas:

 

-         Tadinha da Lolinha...

 

E outra vez, lá foi o escrivão, no uso de suas atribuições legais, fazer interrogatórios

mais:

 

-         E... quem é essa Lolinha... Dona Divina...?

 

A resposta veio bem depressinha, denotando muita surpresa no fato de haver

achado alguém no  mundo que não conhecia  a.... Lolinha.

 

- É a muié do Ambrózio, uai...!

- Ahhh!!... A muié do Ambrózio...

 

Por sua vez, achou assim, também o escrivão

E mais uma vez, lá foi ele pacientemente a inquirir... a inquirir... Antes, assim e a si mesmo: Oh meu Deus, o que é que poderia estar fazendo o saco do Ambrózio com a bola e a fera e o Zebastião no quintal da Vininha...?

 

E continuou pensando mais, afogando-se num mar de arrependimentos: Oh meu Deus... por que não virei padre, como tanto queria minha donOnézima...?

 

Retornou afinal ao interior desta Distrital, nestes termos tentando negociar com Dona Vininha:

 

-         Minha Senhora, queira por gentileza, e pela magna bondade do Supremo

Criador, ater-se ao intrínseco dos fatos, senão...

 

E berrando:

 

-         ...senão nós só vamos sair daqui no final do terceiro milênio, diabo!!!

 

E voltando mais uma vez a seus cabais:

 

-         ... e deixar fora desta história o saco... quer dizer... o Ambrózio!

 

         Tal lembrança arrancou do peito da Vininha dorido suspiro, condoída ainda com a desgraça alheia:

 

-         Ele mudou. Acho que de tanta tristeza...

 

         E depois, retomando o fio da meada, emendou com muita raiva:

 

-         Mas largou p’a traz a porcaria da Pantera lá em casa! Agora, olha aí a merda

feita...

 

Senhor Delegado, o  escrivão de seu cargo desistiu de tentar... pasteurizar ou... decantar o

verbo de tal senhora. Sentou-se à mesa e, servindo-se do ensejo de haver retomado ela – a tal senhora - o fio da meada, pôs-se a costurar, na sua velha Olivetti, cutucando suas lembranças inquirindo assim:

 

-         E o Zebastião...?

-         É um fedaputa!

-        Dona Divina...

-         E o excomungado nem é o dono da casa, ‘seu’ Delegado! Vive lá de favor, nas

costela’ da irmã dele!

-        Dona Divina... 

 

Empurrada assim levantou-se da cadeira e continuou relatando os fatos, dizendo mais

que, a fome de vingança do Zebastião, não havia ainda sido suficientemente saciada. Decidiu então ampliar o seu raio de ação. ‘Garrou mais um tijolo e, em busca do mesmo destino, despachou o qual pela mesma estrada percorrida pelo seu precursor. Não obstante...

                                                                                              Desviou-se este.

                                                                                     Não quebrou mais telhas, mas passou raspando a cabeça da Chiquinha, outra inquilina sua que, por isso também bem enfezada, dispôs-se a vir com sua senhoria  até a esta Distrital e apresentar-se como testemunha de tanto desaforo,  aqui, e  nestes termos, circunstanciado.

 

-         Calma, ‘seu’ Delegado! Ainda tem mais...

 

Dona Divina parecia uma matraca destaramelada:

 

-         O senhor tem que ver, seu Delegado, que a bola do menino do Zebastião é que

veio pro meu quintal! E não que a Pantera do Ambrózio – que ‘tava no meu quintal -  é que tivesse ido para o quintal do Zebastião, uai...? !

 

         Nunca desistiu de falar também com as mãos. Com elas distribuía geograficamente cada termo, cada bicho e cada coisa.

 

-         E olha aqui: o quê que o senhor acha: se a Pantera não é minha, então não pode

ser minha também a culpa da arte que ela faz, pode...?

 

         Sobre tais quesitos o escrivão despachou “em branco”. E na seqüência de seus vulcânicos desabafos contou ela mais que, em resposta à segunda tijolada do Zebastião ela mandou de volta, por cima do muro, outra tijolada. Assim:

 

         - Oh, Zebastião, c'ê vai pagar minha telha, seu fedaputa!  

 

Disse-me ela, Senhor Delegado, que o Zebastião negou-se peremptoriamente. E que para

reforçar o seu protesto ele deu um tamanho chute no chão que fez o Balneário inteirinho tremer. E com o punho fechado da mão direita deu um murro na palma da mão esquerda, ‘seu’ Delegado, que pareceu um tiro. Retumbou até lá pelas bandas do Criméia e do Tremendão. Pareceu até um daqueles estrondos que faz a passagem de um mirrage de Anápolis.  Ao mesmo tempo mandou, de volta, por cima do mesmo muro, mais uma tijolada. Agora, também em palavras, respondendo às da Vininha.

 

-         Eu não pago nem na polícia!!

 

Desabusado! Houve de pensar ela. Mas calou-se. Passou a mão n’algumas economias,

pegou o ônibus e veio bater aqui nesta Distrital, muito confiante nas severas providências que haveria de tomar os representantes daquela entidade oficial naqueles termos desafiada. Ouvida a sua história, antes que me mandasse Vossa Senhoria, reduzi assim, a história de Dona Divina, neste TCO -  Termo Circunstanciado de Ocorrência. Fez-se. os dois

 

DESPACHO

Registrados os dados possíveis, seja uma cópia deste Termo Circunstanciado de Ocorrência remetida ao Juizado Especial Criminal, para que tenham curso as demais providências, arquivando-se as demais.

 

Bel. FULANO DE TAL

Delegado de Polícia

  

MARIA DIVINA PEDREIRA E SILVA

Vítima comunicante 

 

FRANCISCO DE OLIVEIRA SANTOS

Escrivão de Polícia