Causos, contos e prosas

A primeria cadeia não se esquece

 

Corria o ano de 1.963 com o país fervilhando nos movimentos populares pré-revolução social. As classes mais organizadas de então, os militares com representação em todos os rincões deste imenso Brasil, aproveitaram o momento de ebulição das massas e deram o golpe de Estado de 64. Eu era adolescente da roça, daqueles garotos espertos, mas desconhecedor das novidades da cidade. Nem vagamente ouvimos falar deste assunto. Quando soube e entendi o golpe de estado de 64, já tinha passado.

Nunca tinha visto a tal de energia elétrica, televisão não ouvira nem falar, rádio era uma novidade conhecida por alguns privilegiados das fazendas do Triangulo Mineiro. Carros, qualquer tipo deles era a maior novidade quando aparecia nos povoados de lá. A nossa diversão principal era as reuniões na casa da Gertrudes para ouvir suas histórias. Era a maior contadora de causos da redondeza.

Havia ocasiões especiais, como na quaresma, de minhas irmãs e eu não termos coragem de ir embora pra casa em razão das assombrações noticiadas pela historiadora de fábulas. Meu pai tinha de ir nos buscar, e é claro com uma vara de marmelo pra gente aprender a ter coragem. Meninos daquela ocasião ganhavam coragem na ponta do chicote e da vara de marmelo.

Naquela quadra meu pai ficou doente e como filho mais velho tive de acompanhá-lo ao custoso tratamento na cidade de Frutal/MG. O recurso de saúde disponível não foi suficiente. Precisava embarcar pra Araraquara-SP, cidade lá no oco do mundo, pros lados do estrangeiro. Em nosso sertão da fazenda Arapuca as coisas modernas como, matraca, trator, carroças de pneu, panelas de ferro, roupa de carregação, remédio de caixinha, querosene e tudo “industrializado” vinha de São Paulo, um país desenvolvido muito longe.

Agora eu o primogênito da família tinha de ir pr’estas terras distantes. Fiquei cismando como falaria com o povo de lá, tocando assuntos em outro idioma, um tal de português de gente da metrópole. Nós falávamos um linguajar tupiniquim cheio de uais, comendo letras “rs” lh, e outros dígrafos carecedores de maior manobra nos músculos da língua.

E lá fui eu cheio de medo, de dúvidas e entusiasmo com a cidade grande. Frutal tinha na ocasião um ajuntamento de gente nunca por nós imaginado lá nas festas de São João do povoado do Chatão. Perguntei por curiosidade quantos habitantes existia. Um soldado respondeu orgulhoso da população: mais de três mil pessoas. Fiz cara de dúvidas e quis provas de tal absurdo. Imaginava como seria fazer comida pra tanta gente, se não vi uma única roça na tal cidade.

O homem da lei, em quem eu tinha de acreditar, justificou o número pra tanta gente: estava incluso homens, mulheres, velhos e crianças. Fiquei sestroso com o puliça. O sujeito estava abusando de sua condição de otoridade, querendo me tapear. Onde já se viu mais de mil homens,mulheres e crianças num mesmo lugar. Não devia existir como dar comida pra tanta gente? Quando embarquei na jardineira e a vi lotada dei mais crédito ao policial.

 Pela a amostra do moderno meio de transporte, devia ter pelo menos mais de mil habitantes. Mas só! Chegamos em Colômbia. A ponte saltando o rio Grande era uma enormidade de construção, ficava cada vez mais abismado com o progresso. Imaginava as histórias da Gertrudes e mais dava-lhe asas pra imaginação virando realidade. Será que ela já tinha visitado uma cidade como Frutal?

Chegamos na estação ferroviária e achei tudo muito exagerado. Havia um vagão parado com oito rodas de ferro apoiada nos trilhos. Era capaz de abrigar na sua carroceria todo o gado da fazenda do Nhô Joca, umas cem reses. Entramos neste tal trem de ferro e viajamos pra Araraquara aonde chegamos por volta de nove horas da noite. Não sei como mas o hospital pra onde meu pai foi encaminhado mandou uma ambulância buscá-lo. Não podia acompanhar.

O dinheiro que eu tinha era suficiente apenas pra pagar a passagem de volta. Resolvi dormir num banco da Estação Ferroviária. Coloquei meu embornal como travesseiro e como estava muito cansado ferrei no sono. Acordei com dois policiais fardados querendo documentos, explicações, razões praquela heresia. Era uma cidadezinha minúscula, somente as casa em volta da estação da estrada de ferro, mas tinha lei. Onde já se viu vagabundo querendo botar banca de pançudo? Não podia dormir ali, e trata-se de sumir, se não quisesse ir pro xilindró. Papo mais desajeitado pra tocar naquelas horas altas.

Expliquei o porque de estar ali. Não os convenci e não permitiria que ficasse. Não tinha nenhum documento. Minha salvação foi mostrar a mão calejada parecendo uma lixa. Tiveram meia complacência, mas levaram-me à presença do delegado e o interrogatório foi longo. Finalmente decidiu que eu devia ficar dormindo na cadeia pública, já que não tinha dinheiro pra hospedagem, era menor de idade, estava desacompanhado.

Enquanto isto checaria minha história. A passagem de volta estava no bolso pra sete horas do dia seguinte. Relógio era um luxo que eu nem conhecia direito. Lá nas nossas vidas de caboclos de fazendas a hora era calculado pelo caminhar do sol, da lua e posição de nosso cansaço. O dia começava quando ficava claro e terminava ao escurecer. Ninguém falava em horário de começar a trabalhar e parar.

Conforme tinha costume acordei no primeiro cantar dos galos. Se estivesse em casa era hora de levantar, tomar café preto, pegar o caldeirão de comida e marchar pro eito. Escutei algumas manobras de trens e pensei de perder o da minha vez. Se acontecesse estava ferrado, sem dinheiro pra comprar outra passagem e enrolado com aquele delegado cheio de perguntas que eu não sabia responder. Olhava de esguelha pra porta da rua, querendo asas pra ir embora. O carcereiro não aparecia. Sujeito folgado esperando o sol na cama. Lá na fazenda Arapuca não servia pra fazer nada.

A chave da cela foi deixada no umbral da janela do corredor bem em frente à porta da cela. Era pro carcereiro soltar-me quando chegasse. Peguei o cobertor e fiz na ponta dele um volume amarrando o travesseiro pra fazer peso e joguei várias vezes até derrubar o molho. Trouxe-o pra junto da grade e abri o cadeado. Com uma das chaves destranquei a porta da rua. Sai trancando tudo novamente. Apaguei os vestígios da fuga e pus o pé no degrau da rua.

Quase gelei quando senti a mão de alguém me segurar pelo braço, vindo por trás de mim. Não tinha dado um paço em minha liberdade. Por sorte era um homem do bem, ouviu-me, sabia do capiau fechado pra dormir, era para soltar com prazo suficiente a embarcar no trem das sete. O sujeito levou-me novamente pro interior da cadeia e fechou-me lá. Aí imaginei de ter cometido um crime imperdoável e puxaria cadeia por um par de anos. Quando voltasse pra Arapuca, até a Inhazinha teria casado.  

Daí a pouco ele voltou de cara amarrada. Abriu e mandou sair. Íamos ao juiz de menores pra saber qual a minha sentença pela tentativa de fuga. Pensei até em chorar, mas lembrei das muitas guascadas levadas de meu pai pra deixar de ser mariquinha. Estava na quadra da vida onde o menino vai subindo na era do homem, engrossando a voz, tomando atitudes, virando cabra macho e segurei minha onda. Era homem e como tal estava responsável pelos meus atos. Que fossemos ao juiz e pronto. Marchei garboso como faziam os cavalos da fazenda toda vez que íamos pegá-los pra lida.

Chegamos à ferroviária. O trem chegou resfolegando vapores em todas as rodas. Muitos passageiros saltaram, haviam muitos guardas fardados vigiando. O meu carcereiro chamou um dos homens de divisa nos ombros, falou um monte de coisa que não ouvia. Depois me apresentou a ele com a recomendação de só deixar sair do trem na cidade de Colômbia. Pensei que viajaria algemado ou trancado nalguma cela daquela coisa.

Um guarda foi destacado pra me escoltar. Chegamos à Colômbia na curva do dia. Estava faminto, mas não dava um pio. Meu carcereiro chamou outro policial e entregou-me a ele com recomendação expressa de deportação pro estado de Minas. Aqueles paulistas estrangeiros filhos da puta, iam piar fininho se algum dia aparece nas margens do Rio Grande.

Fui colocado no ônibus pra Frutal e cheguei na casa de um conhecido ali pelas duas horas da tarde. Almocei a janta que não tive no dia anterior, peguei minha bicicleta e marchei livre, alegre, feliz pro meu sertão, onde era conhecido, respeitado como menino trabalhador.

Cheguei em casa e por muitos dias fui o contador de histórias de todas as rodas da garotada da colônia. Com o reprisar das façanhas foram decorando as passagens e no final quando começava a falar qualquer uma delas alguém sempre replicava com o final. Tinha de terminar o assunto. Mas foi emocionante minha única vez dormindo em uma cela de cadeia. Foi uma experiência que nunca mais quero repetir.

Gyn, 04DEZ07

Delegado Euripedes III

 
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