Causos, contos e prosas

ATROPELAMENTO DO GAFANHOTO

Vovô Sildo se casara maduro, como diziam na gíria do interior mineiro. O tal já passava dos trinta e cinco anos. Recém casado foi morar na fazenda Figueira, de propriedade de uns ingleses lá das “Zoropias”.  Raramente apareciam e quando o faziam não apeavam da condução. Passavam vistoria nas roças de café, montados em charretes, usando uns binóculos comuns de corrida de cavalos. Diziam palavras incompreensíveis para os trabalhadores. Mas pelos gestos pareciam estar elogiando o trabalho, admirando o viço dos cafezais.

O patrão de Sildo era um homem esperto. Quando se aproximava o tempo da visita, chamava a turma de enxadeiros e passava-lhes tarefas, para limpar as ruas de café apenas até onde a vista alcançasse. Aqueles pedaços dos talhões nas beiras dos carreadores eram mantidos sempre livres da marmelada, do picão, do timbete, do pé de galinha, da capoeiraba, da beldroega, etc. Lá para os fundos a macega tomava conta. Só era controlada para não matar os pés de café. Ele falava a título de gozação, quando alguém lhe questionava sobre aquele capricho na limpeza só nas pontas das ruas, dizia que ser para "inglês ver"

O povo roceiro não é bobo. Apenas falta-lhe a instrução das letras. Logo pegou aquilo como ditado e a coisa se espalhou por outras fazendas. Sempre quando alguém queria fazer alguma tapeação, ia logo lascando o verbete matuto. O ditado pegou e mais um jeitinho brasileiro foi se alastrando. Nesta fazenda chegaram os primeiros tratores das redondezas, importados da Inglaterra.

Uns mostrengos verdes de nome invocado e de muita força. A marca ostentada em seus capuzes era JOHN DEERE, mas a matutada logo rebatizou para Jandira. As maquinas eram olhadas com desconfiança pelos lavradores. Viam neles, não um aliado, mas um tomador de emprego. Às vezes acontecia de logo depois da chegada de um trator, alguma família de meeiros ou agregados ir embora, aí a notícia corria o mundo do sertão como um alarme perigoso.

Bento, cunhado de Sildo moço novo e inteligente viu naquele implemento agrícola um modo de melhorar os seus ganhos. Quis logo aprender a manejar a máquina. Com poucos dias de repasso ficou craque a tal ponto de passar marchas andando sem raspar o cambio. Logo sabia tudo sobre o bruto: como trocar o óleo, fazer sangria para retirar ar da injetora, ver nível d'água e óleo etc. Passou a ser mensalista ganhando mais do que o dobro dos demais. Sildo se interessou pelo oficio e foi aprender com o cunhado mais novo.

Vinham por uma estrada de chão batido margeando o rio Pardo. De cada lado da estrada vicejava capim colonião com altura de mais de braça. Era uma invernada deixada pelo administrador, para servir como viveiro de mudas e semente. Uma descida leve com mais de légua, com pouca curva. O cunhado parou o trator e entregou a direção para Sildo. Mostrou-lhe como era feito a mudança de marchas, onde ficava o breque e como deveria pisar para frear uma roda ou as duas, a embreagem para parar ou mudar marchas etc. Passou para a carreta engatada e mandou tocar.

Sildo não era bobo e parecia levar jeito para a coisa. Engrenou logo uma terceira marcha e saiu pisando fundo. O trator deu uns solavancos com a inabilidade dele, mas por ser uma máquina rústica, deslanchou. Já se julgando tratorista engrenou outra marcha e mandou ver no acelerador manual, puxando-o até o meio. O batidão da máquina estava gostoso e resolveu puxar o bigode dele até o limite. Andou uns cem metros e olhou para trás a fim de conferir sua performance.

Ver se o professor aprovava. Bento acenou para ele puxar a alavanca do acelerador deixando o pé descansado. Ele já o tinha feito e confirmou com um gesto batendo as mãos mostrando correr mais que um cavalo em disparada. De soslaio olhou para cima e viu o canudo de fumaça saindo do escapamento, se misturando com o vento. De repente Bento começou a gritar na carreta, batendo um pedaço de ferro no assoalho. O barulho das pancadas chegou ao piloto chamando sua atenção. O tratorista ouvindo o chamado e vendo os gestos do cunhado ficou assustado.

Ele mandava parar destemperadamente e acenava informando sobre algo de muito grave acontecendo. Não o escutava direito para entendê-lo. Sildo se apavorou de vez. Não acertava nenhum dos comandos. Pisava no acelerador e soltava, mas a maquina continuava correndo. Mexia na alavanca de cambio, mas como estava sendo forçado não desengrenava. Esqueceu-se completamente do tal acelerador manual. Bento continuava naquela gritaria sem fim.

Apareceu uma curva mais fechada e Sildo nem a viu direito. Estava com os olhos grudados nos pedais de parar o trator. Perdeu o domínio da montaria de vez, entrando naquele capinzal imenso. O mato vinha dobrando por cima do trator e resvalava nele como um relho punindo-o pela imprudência. Bento continuava deitado no assoalho da carreta rolando de rir. Havia participado da aração do terreno daquele pasto e sabia não existir nenhum toco ou buraco perigoso nas imediações. O trator foi dando saltos sobre as touceiras do capim, até que entestou em uma moita mais avultada e morreu.

Para trás ficou aquele amassado na saroba onde tinham passado. Sildo tremia em cima do banco. Queria saber o que tinha acontecido de tão grave para mandar parar com aqueles modos doidos. Pela cara de Bento e o tanto que ria, percebeu tratar-se de alguma aprontação. Bento respondeu na maior sinceridade mostrando um gafanhoto esmagado no pneu do trator. Tinha sido atropelado.

Lá onde tinha mandado parar, estava um daqueles comedores de pastagem parado na estrada. Também fora esmagado. Sildo ficou botina da vida e saiu pisando duro, andando pela picada onde o trator passou. Bento o chamou diversas vezes ele nem virava a cabeça. Foi firme e sério no rumo de seu rancho. Rompeu a pé as duas léguas dali. Cortou caminho pela invernada para evitar ser alcançado pelo cunhado. Passou muitos anos sem olhar para um volante de trator. Com muito custo voltou a falar com o cunhado.

Fonte: Delegado Eurípedes da Silva III